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Comemorações 

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Francisco Seixas da Costa, diplomata aposentado e comentador de assuntos internacionais na comunicação social, publicou há dias uma fotografia da artéria mais emblemática da capital portuguesa, completamente desértica, com a legenda «Imagem da multidão que, nesta tarde, enche a manifestação na Avenida da Liberdade, em saudação ao dia que passa». O dia era 25 de novembro — e óbvia a ironia: em contraste com comemorações como, por exemplo, as do 25 de Abril, nem uma só alma se terá maçado a festejar aquele acontecimento que, cerca de um ano e meio depois, é apresentado por alguns como complemento da Revolução dos Cravos. 

Consideremos: 

O povo português é composto, essencialmente, por aquilo a que em tempos se chamou «maioria silenciosa». Não se sente particularmente motivado para participar em eventos de caráter comemorativo como este. Passa-se, sensivelmente, o mesmo, por exemplo, com o 5 de outubro, cujas comemorações não galvanizam multidões. São vistas como algo corriqueiro. Quem sente entusiasmo em festejar a normalidade? 

Dir-se-á: «Mas com o 25 de Abril e o 1.º de Maio não é assim: todos os anos, a Avenida enche-se de multidão». Acontece que comemorações como o 25 de Abril ou o 1.º de Maio têm por trás uma ativa máquina propagandística, movida, não só por partidos de esquerda como o PCP ou o BE, mas também pelas influentes centrais sindicais. É um ativismo «ativo» (passe o pleonasmo), algo que sempre caraterizou a esquerda mais radical. O normal, o corriqueiro, é mais carateristicamente de direita. Por isso, o que diz Seixas da Costa, parecendo uma retumbante machadada, não passa de um argumento facilmente rebatível. 

Poderíamos também apontar, por exemplo, a afluência popular aos funerais de Amália Rodrigues ou de Marco Paulo, onde houve muito mais genuinidade e adesão popular espontânea do que em quaisquer comemorações, cuidadosamente orquestradas, do 25 de Abril ou do 1.º de Maio. E comparem-se essa genuinidade e essa adesão à indiferença que suscitaram os funerais de Álvaro Cunhal[1] ou de Vasco Gonçalves[2]

A verdade é que, se em 1974 tivesse triunfado a linha radical que pretendiam, por um lado, o PCP e, por outro, as tendências corporizadas em torno a Otelo Saraiva de Carvalho[3], faz sentido imaginar que em Portugal se teria instalado um regime político idêntico aos da Europa de Leste (o Notícias da Amadora, que durante o PREC[4] funcionou como uma espécie de órgão oficioso do PCP, proclamava «Seremos uma democracia popular!»), até à sua provável queda cerca de quinze anos mais tarde, quando esses regimes se desmoronaram como castelos de cartas na onda que ficou conhecida como «queda do Muro de Berlim» e que, mais do que a simples RDA[5], varreu também a Polónia, a Hungria, a Checoslováquia, a Roménia, a Bulgária e, por arrastamento, a pouco significativa Albânia, a Mongólia e até a «impensável» União Soviética. Teria sido uma década e meia desperdiçada por Portugal. E, sobretudo, Cunhal teria tido o inglório fim de um Jaruzelski[6] ou de um Tódor Jívkov[7]… quando não de um Erich Honecker[8] ou mesmo de um Ceaușescu[9]. Na História de Portugal, lembrá-lo-iam como na da Hungria se lembra hoje János Kádár[10] ou na da Chéquia e da Eslováquia se «chora» Gustáv Husák[11] — em lugar da auréola de santidade, heroísmo e martírio «progressistas» que a esquerda portuguesa lhe conferiu. A maior derrota dos comunistas portugueses (a frustração do projeto de ditadura do proletariado em 1974-75) foi também a sua maior sorte, ao poupar-lhes a ignomínia associada à chamada «queda do Muro de Berlim». 

Talvez por em Portugal não se ter chegado a viver uma ditadura como as da Europa de Leste, os portugueses não se sentirão particularmente motivados para comemorar o 25 de novembro de 1975 (que, importa frisar, foi mais uma vitória da esquerda democrática sobre a esquerda totalitária do que uma vitória da direita sobre a esquerda). 

Em termos de propaganda e galvanização de massas, a esquerda, nomeadamente a portuguesa, é bem mais eficaz do que a normalidade e o corriqueiro daquilo a que se chama «direita».

Jorge Madeira Mendes


[1] Álvaro Barreirinhas Cunhal (1913–2005), grande impulsionador do Partido Comunista Português (PCP) que dirigiu como secretário-geral entre 1961 e 1992, incondicionalmente fiel à política da União Soviética. 

[2] Vasco dos Santos Gonçalves (1921–2005), general do Exército Português, primeiro-ministro de vários governos provisórios durante o PREC, um período igualmente denominado «gonçalvismo». Foi acusado por personalidades, quer da direita quer da esquerda democrática, de excessiva proximidade ao Partido Comunista. 

[3] Cf. O HOMEM QUE FOI HOJE A ENTERRAR, jornal «bomdia.eu», 27.07.2021 — 

[4] Sigla informal de «Processo Revolucionário em Curso», também conhecido como «Período Revolucionário em Curso». Designa, em sentido lato, o período de atividades revolucionárias após a revolução de 25 de abril de 1974 e até à aprovação da Constituição Portuguesa em abril de 1976. Termo frequentemente alusivo ao chamado «Verão Quente de 1975», que culminou com o golpe militar de 25 de novembro de 1975 e o fim da deriva totalitária em Portugal.

[5] Sigla de «República Democrática Alemã», um Estado de orientação marxista, fiel aliado da União Soviética, que existiu entre 1949 e 1990 na parte oriental da Alemanha, ocupada e administrada pelo exército soviético após o final da Segunda Guerra Mundial. 

[6] Wojciech Witold Jaruzelski (1923–2014), general polaco, dirigente máximo de facto da República Popular da Polónia entre 1981 e 1989 e primeiro-secretário do Partido Operário Unificado Polaco entre 1981 e 1989. Foi, por conseguinte, o último líder da Polónia comunista. 

[7] Tódor Hrístov Jívkov (1911–1998), secretário-geral do Partido Comunista Búlgaro a partir de 1954 e dirigente máximo de facto da República Popular da Bulgária até à sua destituição em 1989, no contexto da queda generalizada dos regimes marxistas na Europa de Leste. 

[8] Erich Ernst Paul Honecker (1912–1994), político comunista alemão que dirigiu a RDA entre 1971 e poucas semanas antes da queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989. Preso e julgado por crimes contra os direitos humanos durante a sua governação, acabou por ser autorizado em 1992 a partir para o exílio no Chile, onde morreu dois anos mais tarde. 

[9] Nicolae Ceaușescu (1918–1989), segundo e último dirigente comunista da Roménia e secretário-geral do Partido Comunista Romeno entre 1965 e 1989. O caráter ditatorial da sua política levou à sua destituição pela força e à execução sumária durante o levantamento de dezembro de 1989, igualmente no contexto da queda generalizada dos regimes marxistas da Europa de Leste. 

[10] János József Kádár (1912–1989), secretário-geral do Partido Socialista dos Trabalhadores Húngaros durante 32 anos, teve um papel ativo na repressão da revolta húngara de 1956, que o exército soviético ajudara a esmagar. Afastado do poder em 1988 por motivos de saúde, morreu em julho de 1989, três meses antes da dissolução formal do regime comunista que criara e promovera.

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