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Com pouco a perder

Por muito que esteja a tornar-se lugar-comum, dificilmente podemos furtar-nos à comparação dos acontecimentos de Honguecongue com uma luta entre David e Golias. Manifestantes, maioritariamente jovens, a enfrentarem há meses forças policiais e paramilitares ligadas a uma superpotência que, além de esmagadora do ponto de vista demográfico, caminha a largos passos para disputar igualmente a primazia mundial nos planos económico e militar, merecem, no mínimo, admiração.

A subtração de Honguecongue à mãe-pátria chinesa, no século XIX, fora tudo menos pacífica e dignificante. Em consequência da derrota nas duas Guerras do Ópio, que a Grã-Bretanha, apoiada pela França, travou contra ela, a China teve de aceitar o comércio de ópio e aumentar as importações de mercadorias de países ocidentais com os quais tivera até então superávites. E entre as outras condições humilhantes a que os britânicos, triunfantes, a forçaram incluiu-se a cedência de um porto meridional chamado Honguecongue. No âmbito de um acordo posterior, de 1898 (obviamente também imposto), a Grã-Bretanha controlaria a colónia por um período de 99 anos.

Em termos de produto interno bruto, a economia chinesa — que durante séculos, até à Primeira Guerra do Ópio (1839-1842), fora a maior do mundo — caiu para metade. Pouco a pouco, a China tornou-se um país do Terceiro Mundo, situação agravada com as fomes que dizimaram milhões e milhões de camponeses no decurso das campanhas de coletivização de Mao Tsé-Tung a partir da segunda metade do século XX.

Ora, durante as quase dez décadas seguintes sob domínio britânico, a população de Honguecongue foi desenvolvendo uma cultura que a distanciou drasticamente dos irmãos chineses. Entranharam-se nela os valores das democracias pluralistas, com destaque para o Estado de direito, a liberdade de expressão, o pluralismo, a liberdade de escolha política — tudo isso acompanhado de uma prosperidade material notável, a distâncias dir-se-ia intransponíveis pelos parentes da antiga pátria. Com Honguecongue passa-se praticamente o mesmo que com Taiwan, onde germinou (e se consolida) um sentimento de comunidade nacional distinta da China continental. Claro que tal deriva nacionalista é impensável para o governo de Pequim, fiel herdeiro do regime comunista que, em 1951, esmagou até o separatismo do Tibete, país que, historicamente, tem uma inegável identidade própria.

Chegados, pois, a 1997, termo do dito prazo de 99 anos, a Grã-Bretanha devolveu Honguecongue à China. No tocante à «prosperidade material», pouco haveria a temer, com a China já então entusiasticamente lançada numa desbragada opção de enriquecimento através da iniciativa privada. Restava a idiossincrasia, eminentemente ocidental, em relação a cujo futuro nada augurava de bom a integração num Estado totalitário, governado por um partido que cada vez mais discricionariamente controla as ações e até o pensamento do cidadão, uma das mais inquietantes concretizações do pesadelo de George Orwell na sua ficção premonitória «1984».

Contudo, o acordo de devolução previu uma transição de 50 anos, durante a qual Honguecongue (tal como Macau, aliás) conservaria o essencial da sua superstrutura de tipo pluralista, antes de uma integração total na mãe-pátria. Um país, dois sistemas, rezava o promissor lema na altura. E cincoenta anos são meio século, tempo suficiente para que muita coisa mude…

A verdade, porém, é que o período de transição para a integração plena de Honguecongue na China leva já mais de 22 dos 50 anos que deverá durar. Pelo menos para as gerações de meia idade, o acordo faz parte da sua memória recente. De repente, meio século afigurou-se menos tempo do que parecera. E os jovens de hoje temem o que aguardará os seus filhos e netos na idade adulta.

O acontecimento que despoletou a atual agitação (evito chamar-lhe sublevação) foi uma lei, avalizada pelo governo local de Honguecongue, nos termos da qual pessoas residentes neste território mas perseguidas pelo poder judiciário chinês poderiam ser entregues às autoridades policiais da China a simples pedido destas. Alegadamente, estaria apenas em causa o delito comum. Todavia, temeu-se a abertura de um precedente para a perseguição discricionária de gente malquista pelo governo de Pequim.

Face à reação popular, a lei foi já revogada; mas, como se a gota tivesse escancarado as comportas da apreensão e do medo, a contestação prossegue. Trata-se de uma geração que desespera quanto ao seu futuro. E esta luta tenaz, contra um poder imenso, brutal, um poder enraivecido com a ousadia e que ameaça «partir-lhes os ossos», mais do que simpatia, merece uma respeitosa admiração.

 

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