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Carlos Colabone: o teatro em sua intensidade máxima

Ainda muito jovem, Carlos Colabone deixou Rio Claro, no interior de São Paulo, para embarcar em seu sonho de fazer teatro. Chegando à capital paulista, foi parar no legendário Teatro de Arena, onde trabalhou com Fauzi Arap. Pouco depois, integrou o Grupo Tapa, no qual ganhou seu primeiro prêmio como cenógrafo, por uma das mais criativas e geniais montagens de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues. Paralelamente à trajetória como cenógrafo, atuou como carnavalesco e ilustrador de livros. E há mais de três décadas dedica-se ao magistério.

De onde a ligação com o teatro e nele com a cenografia e os figurinos?

A ligação com o teatro vem do Colégio Prof. João Batista Leme, em Rio Claro. Do trabalho provocador e inusitado que se fazia junto aos alunos pela diretora, Terezinha de Jesus Pimentel Vianna, e pela competente equipe de professores, sobretudo os de Língua Portuguesa e Desenho. Essas foram as duas fontes onde realmente bebi e me fortaleci de conhecimento necessário para enfrentar São Paulo. Anos depois, percebi que muitos amigos, profissionais de teatro, também tinham vindo do interior para realizar os seus sonhos por aqui. São Paulo é um porto. Então, conhecer o teatro, de fato, ficou por conta do trabalho estimulante que tínhamos pelos espaços do colégio. Ali tínhamos os textos e toda liberdade para imaginar o que fazer com aquilo tudo. O espaço, por si só, nos estimulava. Era uma nova proposta arquitetônica que se experimentava pelos edifícios das escolas públicas e fomos brindados com o concreto aparente e muito vidro. Ainda era muito cedo para se falar em rampas de acesso para deficientes e outras necessidades. As escadarias de concreto percorriam todo espaço, levando-nos a uma espiralidade que nos transportava para o piso superior. Isso é teatro! Isso é palco, coxia, camarins, ângulos de visibilidade, amplitude, concretude total! Paralelamente a todo esse movimento, vinha o incentivo de casa. As famílias abraçavam a proposta educativa do colégio. Não tinha roupas e acessórios que não eram levados de casa para as apresentações. Quase tudo era permitido e era um deslumbramento. A casa dos meus pais era muito simples, mas havia dois cômodos nos fundos e um deles, por um bom tempo, foi transformado num pequeno teatro e foi dali que tomei o ônibus para São Paulo, ainda numa rodoviária improvisada, próxima à Estação Ferroviária, e aqui cheguei para conhecer o mundo.

Como foi, ainda muito jovem, trabalhar com Fauzi Arap, em Risco e Paixão e A História Acabou?

A provocação do colégio do interior me acompanhou até o Teatro de Arena Eugênio Kusnet, que me recebeu, através do diretor Fauzi Arap, para fazer parte do Projeto T.A.RÔ dos Ventos. Meus mestres por ali continuaram me incentivando. Fauzi Arap, Chico de Assis, Klauss Vianna, Francisco Medeiros, além, é claro, do núcleo de atrizes e atores como Noemi Marinho, Cláudia Melo, Antonio de Andrade, Eric Nowinsk, para citar os que se mantiveram mais próximos por anos de trabalho. E Risco e Paixão foi também um momento para que eu conseguisse realizar o que mais queria, que era atuar. Acabei criando a cenografia e o figurino, além de ganhar o papel do analista que conversava com Ela, personagem vivido por Noemi Marinho. Vocês conseguem imaginar como eu estava no dia da estreia? Em meio a um turbilhão de atrizes e atores fantásticos, mergulhados num texto do Fauzi Arap, lá estava eu. Onde eu estava? No meio do público! Era dali que contracenava com a Noemi Marinho. Ali vivi por quase um ano a experiência que todo profissional de teatro deve viver. Todos tínhamos aulas de dramaturgia com o Chico de Assis, aulas de preparação corporal com Klaus Vianna, interpretação com o Fauzi Arap, além de horas falando sobre cenografia e figurino. E o tempo era pouco para se resolver tantas coisas, de tantos espetáculos que brotavam. Não tínhamos tempo para as soluções, tínhamos compromisso. Pedi licença ao Fauzi para me retirar do projeto, pois um convite me levaria a conhecer outros países. Alguns meses depois, nossos caminhos voltam a se cruzar pelo palco do Teatro Brasileiro de Comédia, onde Fauzi estava dirigindo Myrian Muniz, em A História Acabou. Mais escola, mais aprendizado, agora somando o talento de Maria Bonomi, chamada para criar a cenografia e o figurino e da qual fui assistente. Poderia escrever páginas apenas sobre essas duas montagens, mas o Risco acabou e prefiro ficar na Paixão das boas lembranças.

E a experiência com o Grupo TAPA, que acabaria lhe rendendo o Prêmio Molière de Melhor Cenografia, em 1994, pela montagem de Vestido de Noiva?

Outras escolas, outras escolas. O Sesc Consolação me solicitou, na época, um projeto sobre futebol. E Nelson Rodrigues sempre foi fissurado por futebol. Era uma grande instalação que partia das medidas de uma trave e por onde discutíamos as ações provocadas pelo futebol. Jamais esquecerei a cena do mestre Antunes Filho chegando, sorrateiramente, e me perguntando se eu já havia pensado em fazer um cenário com objetos em grande dimensão. Naquele momento, estava finalizando uma grande mandala de velas coloridas, a partir da qual discutíamos o sincretismo dentro do futebol. E era, de fato, algo de grande dimensão, muitas velas, muitas cores. Alguns dias após a abertura do espaço para visitação, recebo um telefonema do Eduardo Tolentino de Araújo, diretor do Grupo Tapa, que havia sido levado até o espaço pelo Zécarlos Machado, grande amigo e com o qual, praticamente, iniciei meu trabalho cenográfico em São Paulo, ao lado do querido João Carlos Couto. Ele me convidou para criar a cenografia para a nova montagem de Vestido de Noiva, do Nelson Rodrigues, em fase de ensaios. Aceitei o desafio e lá fiquei, levando a bagagem dos ensinamentos do Teatro de Arena, somados aos ensinamentos do Grupo Tapa. Temporada correndo e nenhum sinal de indicação de prêmio. São anunciados os indicados ao Prêmio Molière e a montagem de Vestido de Noiva, do Grupo Tapa, recebe quatro indicações: direção (Eduardo Tolentino de Araújo), atriz (Denise Weimberg), ator (Zécarlos Machado) e cenógrafo (Carlos Eduardo Colabone). Cerimônia de premiação realizada no Teatro Cultura Artística, em São Paulo. Terminamos a noite brindando com todo o Grupo Tapa, no Restaurante Parreirinha, na Vila Buarque, com direito à presença de Inezita Barroso, que tinha mesa cativa por lá.

Além do teatro, você também atuou como carnavalesco. Como foi a experiência, assim como a de ilustrar livros infantis?

Num primeiro momento, podemos achar que são experiências muito distintas, mas realizar um trabalho para uma agremiação, como carnavalesco, é como ilustrar um livro. A diferença é que nos livros as imagens continuarão nas pranchas de papel e o samba provoca a materialização da cenografia e dos personagens que você cria. E eu iniciei tanto uma coisa como outra imaturamente. Fui aprendendo in loco, com os mais experientes, com o contato diário com a comunidade da Vila Brasilândia, onde fica a sede da Rosas de Ouro, a primeira agremiação para a qual dediquei um ano de trabalho. E era prazeroso. Costumava brincar com as pessoas da comunidade que, a cada noite de reuniões, o salão da quadra parecia uma sessão espírita. Eu ficava no centro e as pessoas ao redor.E todos eram atendidos com enorme carinho. Rumei para outras agremiações. Na X9 Paulistana, além de todas as dificuldades materiais e de espaço para a realização do trabalho, a região da avenida Luiz Dumont Villares, em Santana, ainda era muito deficiente. O metrô foi chegar por lá anos depois. Tudo era precário e a cidade se transformava lentamente. Mas a cadência do samba não deixava o trabalho ser prejudicado e, além do sacrifício, toda comunidade da região embarcou na proposta do enredo, o que aliviou todas as barreiras. Já com as editoras os contatos são outros. Você tem à sua disposição um arsenal, porém para chegar a um denominador comum, pode ser mais complicado. De certa maneira, as minhas propostas sempre foram aceitas de imediato e sempre tive liberdade para trabalhar com os materiais que quisesse. Prazer por prazer, prefiro, sempre, fazer.

Você também fez a cenografia e os figurinos de alguns espetáculos musicais, como o de Zezé Mota, nos anos 1990. Há muita diferença entre eles e o teatro?

Bem, A Chave dos Segredos foi um show de MPB divulgando o cd lançado pela atriz/cantora Zezé Mota. O convite partiu do diretor Fauzi Arap, com quem eu já tinha convivido no Teatro de Arena Eugênio Kusnet, durante o Projeto T.A.RÔ dos Ventos. Os figurinos ficaram a cargo da competência de Lola Tolentino. Eram lindos!E apresentar uma maquete cenográfica ao Fauzi era conversa para mais de três horas. Era sempre uma aula, um aprendizado inesgotável. Eu tinha diante dos meus olhos uma das figuras mais emblemáticas do teatro e dos shows no Brasil. Então era sentar diante do mestre e ouvir todas as suas observações. Ele tinha um talento enorme para mudar tudo. Você entrava numa reunião com uma proposta cenográfica e saía com centenas de outras propostas na cabeça. A partir daí, o trabalho, de fato, era meu. Ter coragem de ir além, de argumentar, de aprofundar questões, de provar. Certa vez, durante o Projeto T.A.RÔ dos Ventos, o Fauzi chamou o ator Décio Pinto, muito querido, e a mim, para uma conversa. Lá pelas tantas, ele virou-se para o Décio e disse: “Decinho, você precisa aprender a dizer mais sim.” E “Carlinhos, você precisa aprender a dizer mais não.” E me entregou um livro do Caio Fernando Abreu para ler. O Fauzi acabou não dirigindo o show, que ficou a cargo de Mauricio Abud, no Teatro do Hilton Hotel, na avenida Ipiranga, em São Paulo.

Conte-nos um pouco sobre sua atuação, por mais de três décadas, como professor de Arte. Como fazer despertar nas pessoas o interesse e a sensibilidade pelas artes?

As experiências pelos ateliês de artes visuais do Colégio Santa Maria sempre enriqueceram a equipe de professores e os milhares de alunos que por lá já estiveram, numa convivência rica com os movimentos artísticos, os artistas e as inúmeras possibilidades que a arte abriga pelo ângulo de visão de cada um. A questão maior ali (e procuramos manter isso até hoje) é a disciplina de trabalho. É você programar e oferecer aos alunos dinâmicas que os fazem acreditar no seu potencial. A internet, os celulares e tantas outras linguagens informatizadas podem ser exploradas, mas com certas restrições. Os alunos de hoje pouco sabem da importância de folhear um livro. Apertou um botão, está dada a resposta. É um tempo limitado que precisa voltar a ser mais esticado, a ficar mais intenso para que as viagens propostas permaneçam em ebulição na vida desses cidadãos. Agora, nós lutamos e fazemos a nossa parte. Cabe às famílias possibilitar tantas outras maneiras para incentivar o olhar mais atento, o prazer por uma exposição, por um espetáculo de teatro, por uma música de qualidade, por uma caminhada pelo centro velho de São Paulo. Quando você sai com os alunos para um estudo do meio, pelo centro velho de São Paulo, há uma infinidade de tarefas que precisam ser cumpridas durante a caminhada, mas especialmente o olhar atento. Sem essa atenção fica difícil captar o ritmo da cidade. Tenho aluno que nunca andou de metrô. Que nunca comeu o sanduíche de mortadela no Mercado Municipal. Que nunca sequer passou pelo Jardim da Luz. Então, somamos a arte aos demais componentes curriculares e partimos para as vivências.

Que rumos vê para a cenografia contemporânea? Algo que a diferencie substancialmente do que era feito meio século atrás?

Partindo da premissa que todo tablado (bem iluminado!) vazio pode ser uma cenografia, arrisco dizer que estamos olhando para um grande aparelho de eletroencefalograma, através do qual as oscilações de ideias atingem alguns picos altíssimos e outros baixíssimos. Até porque, no Brasil, há uma certa ganância, por parte de algumas pessoas, em quererem assumir diversos papéis, quando existem funções que devem ser respeitadas dentro do trabalho teatral. Há profissionais que, além de dirigir, criam a cenografia, o figurino, o lay-out do programa, do convite, etc. Eu sou mais pela frase “cada macaco no seu galho”. Quando você tem nas mãos um texto para ser encenado, encontramos inúmeras referências do autor com relação aos personagens e aos possíveis espaços, cenários. Então, você necessita de um figurinista para vestir esses personagens e de um cenógrafo para articular toda estrutura cênica desses fatos que serão contados. Tenho tido a oportunidade de assistir a muitos espetáculos semanalmente. Espetáculos internacionais, inclusive. Aí você sai pensando por que há um investimento faraônico de determinadas instituições com relação a espetáculos internacionais, quando deveríamos ter um maior investimento nos espetáculos nacionais. Se pudéssemos revelar os bastidores do nosso teatro, creio que ficaríamos chocados com tamanha discriminação. E lembremos que os bastidores são para acolher aqueles que estão em cena, aqueles que estão manipulando as varas cenográficas, aquelas pessoas que estão cuidando do figurino. O bastidor da memória é que é fatal. Aí ou você tem grandes amigos e simpatizantes que possibilitem que o seu trabalho (veja, estou dizendo trabalho) seja visto pelo público ou você vai se acabar de trabalhar para não ser visto. Há um movimento para a mudança o tempo todo. A tecnologia, hoje, possibilita muitas experimentações no campo da cenografia que não tínhamos meio século atrás. Mas, até aí, dizer que é melhor o presente do que o passado,há uma grande distância. Abra um livro da Neyde Veneziano sobre o teatro de revista no Brasil e veja que maravilha era o que se fazia em termos cenográficos, onde a maquinaria era braçal. No entanto, grandes encenadores brasileiros optam por palcos limpos, poucos objetos somados a figurinos precisos. E você mergulha muito mais fundo. Vivam os cenotécnicos, os montadores de luz, as costureiras, os aderecistas, os maquiadores, as camareiras, os técnicos de palco e os cenógrafos!

Que nomes da cenografia nacional e internacional, do passado e do presente, destaca como influências decisivas em sua formação?

“O edifício em si é inútil e necessário ao mesmo tempo. Inútil, já que é com frequência arranjado de um modo que não dá ao espetáculo justiça. Necessário, já que um bem construído espaço permite que o público se junte e fique unido e permite ao ator meditar.” (Peter Brook; Lecat, Jean-Guy; Um espetáculo, uma platéia,um único espaço. Tradução Fausto Viana, 2010). Uma vivência com Jean-Guy Lecat, durante quinze dias, me foi transformadora. O outro foi Gianni Ratto. Um dia fui procurá-lo, no Teatro Procópio Ferreira. Ele estava em cartaz com o espetáculo Com a Pulga Atrás da Orelha. Cheguei mansinho e revelei minha paixão por seu trabalho. Era o início de um mestrado não concluído. Gianni me acolheu em sua casa e, em meio a tantas maquetes, fui aprender um pouco mais sobre o que é pensar a cenografia. Alguns diretores exerceram forte influência em meu trabalho, entre eles, Antunes Filho, Eduardo Tolentino de Araújo, Fernando Peixoto e Francisco Medeiros.

Recentemente, você encenou seu primeiro texto teatral. Como foi?

Uma experiência incrível. É onde, de fato, você se descobre com a possibilidade de abrir os baús da memória. Queria falar sobre o que está na memória de cada um. Lembranças estampadas em fotografias, fatos marcantes, perdas, necessidades de novos encontros, reencontros. Falar de uma alegria de viver que está morrendo. As pessoas não se olham, não se ouvem, não se vêem. Então, existe aí um tempo, uma aproximação que pode voltar a acontecer, pensei. E nasceu Tempo de Viver.

O que dizer do momento que temos vivido na dramaturgia nacional? O teatro ainda não está ao alcance de muito pouca gente?

O teatro tem a função da aproximação. De provocar reflexão, emoção, identificação. Agora, é uma manifestação que necessita de maior atenção por parte do poder público. Enquanto continuarmos vivendo de promessas apenas em discursos eleitorais, corremos o risco de muitos panos de boca se calarem. A dramaturgia nacional tenta, mas escorrega. E feio! Então, a saída é salvá-la, colocando-a na boca de figuras emblemáticas do nosso teatro. Aí a casa lota. Em contrapartida, os espaços alternativos cresceram, mas nem todos com qualidade nas propostas dramatúrgicas e boas encenações. A nova dramaturgia, de qualidade, tem um nome: Kiko Marques. As pessoas que não viram Cais ou da Indiferença das Embarcações, espero que vejam o que virá. Texto de qualidade, elenco, direção, produção. A Boa Companhia merece ser reverenciada, assistida, respeitada. Quando o Gonzaga Pedrosa me falou de Cais, eles estavam no espaço do Instituto Capobianco. Poucos lugares, plateia serena. Pouco tempo depois, deu-se o que precisa acontecer sempre, lotação esgotada. E essa placa é para quem apresenta qualidade.

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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