Primeira epistola de Josephus de Lucilinburhuc aos helvetas, ossonobenses e portucalenses.
Conta-se que naquele tempo
Cleópatra, sétima de seu nome
a reinar omnipotente sobre os dois Egitos,
tomava banhos de leite de cabra para a pele ficar
suave e deslumbrante e agradar
a Marco António e até a César.
Conta-se que naqueles dias
os romanos não sobrevalorizavam
a fidelidade nem o incesto nem a moral
e mil orgias e bacanais
deflagravam as noites
e quando rompia a madrugada
o cheiro a sémen e vinho e ciprino
chegava ao átrio desde o triclínio
e ao vestíbulo e dali até ao prostíbulo.
Então porque não eu?
Sim, e depois?
Não se chora sobre leite derramado
mas neste caso, é caso para dizê-lo
mesmo que eu não quisesse
fiz como ela, afundei os dedos e as mãos
e a boca sófrega na imundice leitosa, aleivosa
tanto leite e suor derramados para quê
quando há tanta gente com fome por aí?
Mas para ter fome é preciso saber
do que se tem fome
e há gente que morre
porque nem sequer sabe abrir a boca
e morre sedenta de língua torcida
ao lado do seu próprio cálice com leite.
E eu? Oh, eu não,
julgando-me mais esperto que os outros
assim que gritei ‘deus, tenho sede!’
logo a maré cheia engolfou-se-me goelas abaixo
e lambuzei-me de leites, deleites, deliciosos, hum,
bebe mais um que só dois é pouco
mata a sede, enche bem as medidas,
ah, a bebedeira louca e nímia, hurra!
lá se foi a sede, lá se foi a raiva burra?
Sei lá se foi, sei lá se foi
leite de vaca ou de boi
ou de cabra ou de ovelha
e quem não quer ser
vista-lhe a pele de lobo.
Navegar é preciso
balbucia o poeta ranhoso e vacila
aquieta-te, ó improfícuo vate vão
pois tudo isto é tão somente
uma furiosa e grandiloquente
fuga para a frente
e nada mais…
Mas, como deter a seta já disparada
com o peito e sair ileso?
Como fazer para que a pedra recue
e não estilhace a vidraça?
Como calar a palavra proferida a mais
que não fez bem a ninguém
nem ao amor nem à verdade
mas logo desenhou
nervuras negras na árvore da vida
cicatrizes na pele transparente
novas fissuras no coração quase oco?
Como fechar a caixa
depois de o diabrete demoníaco
ter saltado cá para fora
e ter despoletado a explosão
na minha cabeça?
Sabes, aedo infeliz
as imagens deturpadas
que chegam em catadupa
do que a tua moral hipócrita
chama vileza, são na realidade
os teus próprios demónios
a subirem do porão
para assombrar a luz.
Eu sei, eu sei, mas agora,
que farei quando tudo arde?
Ardo eu, também?
JLC01062019