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Brasília: o sangue vermelho como alcatrão do branco pensado

Há histórias que não começam pela tradicional abertura: “Era uma vez, há muito, muito tempo…” Não, e essas histórias não são de príncipes e de princesas, é claro. São de gente como nós que decide fazer histórias ou História. O Brasil tem uma, entre muitas, dessas estranhas histórias.

Daqui a alguns séculos, alguns dirão: “Era uma vez, há muito, muito tempo quando um Presidente decidiu fazer uma capital nova”. Hoje fazemos aldeias olímpicas, fazemos bairros novos. Há pouco mais de 50 anos, o Brasil fez Brasília, bem no centro do país.

Muito me falaram do planalto, alto e seco, com a terra vermelha que tudo marcava, que em tudo se entranhava. Brasília é isso e muito mais. Estranhamente, muito mais.

Brasília é o Brasil a tentar fugir de si mesmo, lançando-se numa ilha que parece nada ter de si. Apenas a terra vermelha, qual imagem do homem que vai circulando pela cidade, qual estranho em casa. Dizem-me que a cidade está a ganhar uma identidade para além da força da arquitectura e do urbanismo.

A cidade capital é exactamente a negação de tudo o que se pode apontar para o restante país. Um pensador, Agostinho da Silva, parece ter dito que “o Brasil era Portugal à solta”. Ora, Brasília é o Brasil domesticado, regrado, ordenado através de uma arquitectura espantosa, mas também espantosamente semeada no terreno. Basta sair uns escassos quilómetros do Plano Piloto e tudo se foi. O Brasil mais comum regressou sem a arquitectura lisa e branca. Reina, a escassos quilómetros, a mais comum desordem da paisagem humana livre.

Para quem conhece o Brasil, a capital não é a reunião de toda nação, como o próprio nome tenta mostrar com um artificial pseudo-genitivo de gosto latino. Em Brasília não há Brasil, há uma fuga a ele. Toda a informalidade do país é esquecida. Toda a capacidade de improvisação tenta ser negada. Toda a arquitectura procura ser fria e não quente.

Todos os espaços são impessoais e não pessoais, naquele gosto latino tão típico de quem se fala sem nunca se ter visto. Em Brasília não há acasos, há planeamento. Não há desordem, há ordem. Até talvez se tenha, por detrás de tanto planeamento, tentado esquecer o famoso “jeitinho Brasileiro”… mas isso ficou. Do Brasil, ficou em Brasília essa forma informal de resolver tudo.

A geometria dos espaços e a cor branca não fazem as almas. Podem iludir uma aparente limpeza. Mas as almas lá estão… quentes como a terra vermelha que sabemos estar debaixo do alcatrão das avenidas.

Nesta quadro de linhas brancas, entre edifícios de catálogo, há uns meses, exactamente em Brasília, fui visitar um templo de uma igreja neopentecostal. Era um acontecimento importante para mim. Dei aulas durante uma semana a uma turma que tinha, claramente, um agastamento estrutural em relação a esta igreja. Não era de espantar, parece ser “universal” – como o suposto reino de deus que tem no nome – a antipatia que os evangélicos nutrem pelos neo-pentecostais, como que desejando que o filho pródigo regresse a casa… mas não regressa e, acima de tudo, prospera muito mais que o pai.

E essa prosperidade é patente nos ditos templos. Não apenas no que visitei, mas em muitos outros, de uma arquitectura até sumptuosa. Este, no centro de Brasília, num local muito bem escolhido, era de significativo bom gosto. O edifício era, exteriormente, muito agradável e esteticamente muito bem concebido.

Entrei e, por sorte, ia ter início um culto. Fiquei. O espaço oferece a máxima dignidade a quem entra. É-se acolhido. Afavelmente acolhido. O espaço que nos é posto à disposição é bom. Cadeiras muito boas, espaço limpo, luminoso, digno.

E não será também isso que os crentes buscam? Especialmente os da tradição cristã, milenarmente habituados a serem espezinhados por conceitos e teologias que tudo retiram, a não ser o inferno?

Naquelas poltronas, sob um tecto azul celeste, com um tom de solenidade no ar trazida para o quotidiano, eu via pequenos miúdos com ar de gente respeitada. Eu via mulheres esqueléticas, talvez de fome, com ar de virem a ser atendidas. Eu via rostos de esperança, de prazer, de gozo. Afinal, a igreja até lhes dava a dignidade de serem como todos os outros e de se sentarem como não se sentam em casa, de irem a casas de banho como não têm em casa, de serem tratados, nos seus medos e nos seus sonhos, como nunca foram tratados.

Não será também isto, afinal, dignidade?

É, também isto, a Brasília das linhas brancas que esconde o vermelho-sangue de uma terra por debaixo do alcatrão.

 

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