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Ana Jacinta de São José – Dona Beja: uma mulher à frente do seu tempo

No dia 2 de janeiro de 1800, na cidade mineira chamada Formiga, Brasil, nascia uma linda menina loura de magníficos olhos azuis celestes que viria a ser uma das mulheres mais influentes de sua época, aqui no Brasil do século XIX. Ela foi uma pessoa muito à frente do seu tempo, uma mulher que conseguiu transformar as adversidades que a vida lhe impôs (e a vida não lhe foi fácil) em oportunidades de superar dificuldades, vencer preconceitos, de fazer fortuna e ter influência até mesmo nos assuntos políticos de sua época.

Seu nome de batismo era Ana Jacinta de São José, mais conhecida pelo seu apelido, “Beja” dado pelo seu avô quando era bem pequena.

Diz a história que seu avô a comparava à flor chamada “beijo” e também ao beija-flor, devido à sua grande beleza e doçura desde tenra idade.

Ninguém sabe dizer quem foi seu pai, mas acreditavam ser um português caixeiro viajante, que seduzira sua jovem mãe e a engravidara. Mas todos sabemos dos preconceitos daquela época em relação a uma moça (sua mãe) que viesse a engravidar fora do casamento. Preconceito, que aliás, infelizmente, ainda perdura até os nossos dias arraigados em muitas mentes e corações de pessoas que se acham melhor que as outras. Mas sua família tinha certo status na cidade de Formiga e talvez por isso mesmo, devido ao seu nascimento fora de um casamento, seu avô e sua mãe decidiram se mudar para a cidade de Araxá, na província de Minas Gerais, quando ela tinha apenas 5 anos de idade.

Em Araxá a sua família se estabeleceu em 1805. E embora a família tivesse posses e o respeito da sociedade local, desde pequena Ana Jacinta já despertava inveja devido à sua beleza que só aumentava à medida que ela crescia.

Durante as aulas de catecismo, a menina Ana Jacinta conheceu o menino Manoel Fernando Sampaio, filho de um rico fazendeiro local. Quando estavam, com a aprovação das duas famílias, os adolescentes ficaram noivos. Tudo indicava que o jovem fazendeiro e Ana Jacinta se casariam em breve e que formariam uma família feliz.

Mas às vezes o destino tem outros planos e contra esses estranhos desígnios ninguém pode fazer nada para evitar.

Assim, quando Ana Jacinta tinha apenas 15 anos de idade, em 1815, a cidade de Araxá recebeu a visita do Ouvidor do Rei Dom João VI, o português Joaquim Inácio Silveira da Motta e a sociedade local fez uma recepção para homenagear o representante de sua Majestade.

O que ninguém jamais poderia imaginar é que o Ouvidor do Rei, apesar de ser um homem já maduro, ficaria tão fascinado pela beleza de Ana Jacinta, que a mandaria raptar e a levaria consigo para a cidade de Paracatu do Príncipe, onde residia a serviço do Rei Dom João VI.

Seu avô acabou morto pelos dragões do Ouvidor ao tentar impedir o rapto da neta.

Dessa forma, a jovem adolescente Ana Jacinta foi levada para Paracatu do Príncipe, onde foi obrigada a se tornar amante do Ouvidor Joaquim Inácio Silveira da Motta, sem ter mais ninguém para protege-la, já que sua mãe e seu avô estavam mortos.

Na cidade de Araxá ninguém se dispôs a ir atrás da jovem que agora não tinha mais família, pois sua mãe já era falecida a essa época.

Seu jovem noivo jamais enfrentou o Ouvidor do Rei para reclamar a noiva raptada.

A beleza de Ana Jacinta, a Dona Beja, exercia tanto poder sobre o Ouvidor do Rei, que ele a presenteava com valiosíssimas joias e pedras preciosas e fazia questão de a exibir ao seu lado em todos os eventos da época em Paracatu do Príncipe.

A beleza da “moça do ouvidor”, assim ela era conhecida em Paracatu, lhe granjeou inúmeros admiradores, enquanto viveu com o português Joaquim Inácio Silveira da Motta e após essa fase também. 

Ana Jacinta era jovem, linda e inteligente o bastante para aprender tudo o que podia sobre política e passou a tirar vantagem desse fascínio que sua beleza e inteligência causava nos homens poderosos da sua época.

Naqueles tempos os homens tinham total supremacia sobre as mulheres. E não era comum uma mulher saber conversar a respeito de assuntos como, por exemplo, política e negócios. E a linda “moça do ouvidor” tinha esse dom, de encantar não só pela sua beleza, mas também pela sua inteligência.

Ana Jacinta não só era bela, como ao participar dos jantares no palácio do Ouvidor do Rei de Portugal, em Paracatu do Príncipe, sabia entreter os convidados também com suas opiniões sobre os assuntos políticos da época e ouvindo as conversas ali trocadas muito aprendeu sobre negócios, política e também sobre o ponto fraco daqueles homens poderosos.

E foi assim, segundo dizem alguns historiadores, que Dona Beja conseguiu influenciar junto ao Governador da Capitania de Goiás, para que em 1816, o então chamado “Sertão da Farinha Podre” ¹ – região que compreende atualmente ao Triangulo Mineiro e que na época pertencia à Capitania de Goiás, fosse definitivamente anexada à Capitania das Minas Gerais.

Em 04 de abril de 1816, Dom João VI, então Rei de Portugal e também do Brasil, a pedido de um grupo de fazendeiros, de líderes políticos e comerciantes de Araxá e com a intercessão de Dona Beja, separou o Triângulo de Goiás (Sertão da Farinha Podre) e o anexou a Minas Gerais. 

Ana Jacinta viveu como “a moça do Ouvidor” (amante) durante alguns anos, até que o rei Dom João VI, alertado pelos inimigos políticos do português Joaquim Inácio Silveira da Motta sobre seus desmandos na região, chamou de volta o Ouvidor.  E este não teve outra alternativa a não ser voltar à corte e deixar para trás Ana Jacinta, agora conhecida em Paracatu como Dona Beja, a moça do Ouvidor.

Porém, antes de regressar à corte para nunca mais voltar a Paracatu do Príncipe, o Ouvidor do Rei dotou Ana Jacinta com o suficiente para que ela pudesse levar uma vida digna. Isso somado ao que ela tinha conseguido acumular durante o tempo em que vivera como sua amante, inclusive até uma ou duas minas de ouro, fez dela uma mulher rica e livre.

E ela decidiu, então, regressar a Araxá, cidade que considerava como sua casa.

Ao chegar em sua cidade, Araxá, ela encontrou um ambiente muito hostil. A conservadora e hipócrita sociedade local não a via como vítima, mas como uma mulher sedutora de comportamento duvidoso, mesmo sabendo que ela fora raptada e que ficara completamente órfã no dia do seu rapto. 

As mulheres da cidade consideravam-na um grande perigo para seus casamentos e para os preconceituosos valores éticos da época. Sendo assim, tornou-se uma pessoa indesejada e marginalizada pela sociedade da cidade onde antes crescera e fora feliz ao lado da sua família.

Revoltada, Ana Jacinta, que tivera a ilusão de refazer sua vida em Araxá como pessoa decente, vendo o quão estava sendo injustiçada por todas famílias que a conhecera desde criança, decidiu que então daria motivos para que aquela sociedade realmente tivesse o que falar mal dela. Com a fortuna acumulada em Paracatu, ela comprou um palacete na cidade para ali viver, mas comprou também um sítio nos arredores de Araxá e lá construiu uma magnífica casa de campo, com o intuito de ali instalar um luxuoso bordel, conhecido como a “Chácara do Jatobá”.  Na Chácara do Jatobá, ela era apenas Dona Beja, como passou a ser conhecida e lá ela recebia os homens mais ricos e poderosos da região a peso de ouro. 

 Todas as noites ela recebia os homens que durante o dia já haviam pago antecipadamente em ouro e pedras preciosas para ter o direito de jantar em sua companhia, vê-la dançar, conversar com ela sobre assuntos diversos e tentar a sorte de ser o escolhido para passar a noite com ela.

Dona Beja se reservava o direito de a cada noite, escolher a seu bel prazer um homem diferente para dormir com ela, se este lhe pagasse bem, mas com a condição de poder decidir com quem dormir. 

Diz-se que quando Dona Beja dormia com os homens que selecionava na Chácara do Jatobá, ela muitas vezes usada a chamada “poção do sim ou não”. Juntamente com seu fiel amigo Fortunato, que era o boticário em Araxá naquela época, Dona Beja criava certas poções, conhecidas como a “poção do sim ou não”. Quando Dona Beja não queria dormir com o homem escolhido por ela naquela noite, mas a riqueza do mesmo, por outro lado, a interessava, ela colocava secretamente em sua bebida a poção do “não”. Isso fazia com que o homem não conseguisse manter relações com ela. Claro que o assunto jamais saía da alcova, uma vez que os homens teriam vergonha de confessar o fato. Assim, Dona Beja, sempre muito discreta, recebia pela noite como se tudo tivesse sido consumado e o pretendente com certeza pagaria por outras noites tentando ser novamente escolhido. A poção do “sim”, por sua vez, era usada justamente para o contrário, caso fosse do seu interesse.

Como soe ser sempre, nesses casos, os homens não podiam resistir ao desejo de vir a ser o escolhido de Dona Beja e desfrutar dos seus encantos. Ela se tornou célebre em todo o sertão brasileiro, atraindo os homens ricos e poderosos das regiões mais remotas. E para conhecer os seus encantos esses homens a cobriram de dinheiro, joias e pedras preciosas e ela ficava cada dia mais rica, mais famosa e mais poderosa. E no seu íntimo ela se regozijava de assim vingar-se de todos os que a rejeitaram em Araxá quando cheia de boas intenções ela voltou achando que seria bem recebida.

Diz a lenda que em Araxá existia uma fonte de águas rejuvenescedoras, a “Fonte da Jumenta” ou “Fonte do Barreiro”, água miraculosa, que concedia juventude, saúde e beleza a Dona Beja e onde ela banhava-se todos os dias. Hoje essa fonte ainda existe preservada na forma de um ponto turístico para visitação num hotel da cidade.

Essa famosa fonte nos tempos de Dona Beja chamada de “Fonte da Jumenta”, hoje, chama-se “Fonte Dona Beja” e está localizada na Estância Hidrotermal do Barreiro nos jardins, do Grande Hotel Tauá, em Araxá – Minas Gerais. Trata-se de uma fonte radioativa e mineral que nasce entre rochas vulcânicas em uma gruta estilizada, de onde brota a água e onde no passado distante a bela Dona Beja se banhou muitas vezes.

Segundo especialistas, as propriedades medicinais dessa fonte ativam o metabolismo e estimulam a assimilação diurética, atuando como agente hipotensivo e desintoxicante.

As águas da Fonte também ajudam no tratamento de doenças respiratórias, além de fazer bem aos cabelos, à pele e ao organismo de forma geral.

Ao que parece Dona Beja, embora não tenha sido reclamada pelo seu ex-noivo após o rapto, ainda assim o amava e chegou a ter uma filha com ele, Thereza Thomázia de Jesus, depois de o escolher certa noite na Chácara do Jatobá.

Entretanto, alguns anos depois, numa noite em uma estrada erma voltando para o seu palacete na cidade, Dona Beja foi atacada por dois negros escravos desconhecidos, dos quais levou uma surra tão grande que a deixou muito machucada e de cama por vários meses. 

Tempos depois de recuperada ela descobriu que o mandante da surra que levou foi seu ex-noivo, motivado por ciúmes, desejando que ela tivesse sua beleza prejudicada e fosse obrigada a fechar a Chácara do Jatobá para sempre.

Após ter ciência desse fato, Dona Beja não conseguiu perdoar e mandou matar seu ex-noivo e pai de sua filha Thomázia.  Por esse crime Dona Beja foi presa e foi a julgamento, tendo sido completamente inocentada com a ajuda de seus fiéis, sinceros e poderosos amigos, que apesar de tudo ela os tinha em grande quantidade ali no Araxá e região.

Dona Beja teve uma segunda filha, Joana de Deus de São José, nascida em 1838, de cujo registro de batismo consta que João Carneiro de Mendonça, filho do Coronel de mesmo nome, serviu como testemunha.

Em meados de 1853, Dona Beja, então com 53 anos de idade, resolveu finalmente deixar a cidade de Araxá para trás e num cortejo formado por grandes carroças de madeira de lei bem talhadas, mudou-se para a cidade de Bagagem (hoje Estrela do Sul), lá começando uma nova vida.

Em Bagagem, Dona Beja foi morar numa casa grande de estilo colonial, mobiliada com sobriedade e apurado gosto, tendo uma senzala nos fundos que abrigava os seus inúmeros escravos.

De pronto, comprou um garimpo de diamantes em Bagagem e ganhou muito dinheiro com os diamantes lá encontrados, aumentando ainda mais sua fortuna.

Ana Jacinta, a famosa Dona Beja do Araxá, faleceu de nefrite² aos 73 anos de idade, em 1873, na cidade de Bagagem, hoje Estela do Sul -MG, tendo sido enterrada em um rico caixão com adornos de zinco feitos a mão por laboriosos artesãos locais. 

Em junho de 2011, durante escavações para a construção de um chafariz na praça da matriz da cidade de Estrela do Sul-MG, foi encontrado um caixão com adornos de zinco, contendo os restos mortais de uma mulher que se suspeita sejam de Dona Beja.

Essa foi a mulher, Ana Jacinta de São José, Dona Beja, a deusa do Araxá, que encantou os homens mais poderosos daquela época e influenciou a política e a vida de muitos, como nenhuma outra mulher no seu tempo, aqui nestes confins do sertão brasileiro. 

Uma mulher que soube, por assim dizer, transformar o “limão” que a vida lhe ofertou quando era ainda tão jovem em “refrescante limonada”, pois todos sabemos que ainda hoje, em pleno século XXI, muitas jovens acabam passando por situações ultrajantes, sem conseguir vencer as adversidades. E não por falta de vontade de se erguer, mas por lhes faltarem oportunidades e essa garra que Ana Jacinta instintivamente possuía.

Ana Jacinta, Mulher que soube enfrentar os preconceitos da sua época e sozinha e, qual fênix, se ergueu das cinzas que calcinaram o seu destino. Mulher que deveria ser exaltada, ao invés de ser diminuída por ter sido uma prostituta, pois foi sim uma grande mulher, digna do nosso respeito e consideração.

Essa foi Ana Jacinta de São José, a Dona Beja – um símbolo da mulher que não se deixa abater!

Arádia Raymon

¹ O sertão da Farinha Podre pertenceu sucessivamente à Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, e à de Goiás por mais de 60 anos, para somente em 04 de abril de 1816 vir a ser anexado definitivamente ao território da Capitania das Minas Gerais

² Nefrite – Doença renal que na época de Dona Beja era uma enfermidade que não tinha cura.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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