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Além da máscara, o mundo precisa de cantar a Grândola

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Das histórias que sempre ouvi sobre o 25 de Abril, a que mais me impressionou foi a do Senhor Avelino. O Senhor Avelino é daqueles homens de rosto marcado, sorrateiro quanto baste e duro quando é preciso. Conta sempre, com muito orgulho, que nesse dia de 1974 estava ao lado de Salgueiro Maia. Saca do bolso o comprovativo através de uma fotografia, qual tesouro bem guardado, já gasta pelos 46 anos de democracia portuguesa. “Eu era um mero soldado, mas lutei para que a menina pudesse votar”. Sorrio-lhe sempre, com carinho, pelo ganho desta cidadania. São homens dos cravos que marcharam ao som da “Grândola, Vila Morena”. “É verdade. Veja bem que eu ajudei a menina a ser livre”. Agradeço-lhe com um “obrigada” visível nos olhos. Sempre senti pena por não ter nascido a tempo para estar na linha da frente, naquela altura.

A liberdade. Essa conquista que, de vez em quando, dá passos atrás. Como nestes tempos em que a sua defesa é mais urgente do que nunca. A pandemia em que vivemos mostra bem que precisamos de nos unir na defesa dos direitos fundamentais. O vírus tomou conta dos infectados e dos não infectados. Vemos, por todos os cantos, discriminação e xenofobia. Desculpamos com o medo. Cai o amor pelo outro. Morre a ideia de “Em cada esquina, um amigo / Em cada rosto, igualdade”.  Grândola, a vila morena, a “terra da fraternidade” onde “o povo é quem mais ordena”, envergonha-se, encolhida, na presença deste espírito.

Os estrangeiros deste mundo e os filhos da terra são controlados, em alguns casos, por tecnologia mórbida e mais negra do que o vírus. “Ahhh, é só uma app”. E ele espalha-se na humanidade, qual espectro da consciência vendível. É o “big brother” dos nossos tempos, sempre em directo, que nos dobra como corcundas e nos tira a dignidade. Que nos incendeia a moralidade. E a ideia, genialmente estúpida, dos certificados de saúde? Tudo em troca de uma falsa segurança. Já tínhamos tanta forma de nos dividirmos. Encontramos outra: estamos entre os doentes ou os saudáveis. Tão tolos que somos… isso pode durar o instante de uma gotícula chegar ao rosto. Ou de uma mão descuidada que prende o espirro, por receio de ser presa. “Que se mude a moldura penal”, dizem uns. “Vai tudo preso. Espirre ou não espirre. Pena capital? E os assintomáticos?”. Vamos precisar de muitas cercas de sanidade depois disto tudo.

Chineses nos Estados Unidos são discriminados. Portugueses na China não tiveram acesso a serviços. Chineses em Portugal são ofendidos. Em Timor-Leste portugueses são acusados de serem a praga em pessoa. Até na Madeira assistimos a palavras irracionais. Italianos? Atenção que eles abraçam muito. Espanhóis? Bem, dali nem bom casamento.  Franceses? Comem caracóis o que é uma brincadeira comparando com a gastronomia chinesa… Ahhh sim, em Portugal, também. E na Madeira? Confinem-se as lapas vivas e desinfecte-se a Europa (para os Estados Unidos já não tenho solução). Na verdade, estamos a virar-nos uns contra os outros. O vírus veio para matar e adoecer o corpo e a alma. Para dividir e espalhar o ódio. É o medo! Dizem uns, ao início. É o medo, dizemos em uníssono, durante. Sim. É o medo. Mas, no fim, será a irracionalidade a tomar conta de nós, da nossa liberdade e da liberdade dos outros. Não se deixem ceder. Se calhar é tempo de me deitar sob a azinheira, “que já não sabia a idade” e pensar o mundo. Eu, Tu, Nós.

Ligou-me o senhor Avelino: “Tem os cravos?” Este ano será sem eles. Precisamos de cantar a Grândola. Itália, Espanha, França e Reino Unido, mas também China e Estados Unidos cantem, cantem e cantem até o mundo perceber que precisamos de usar a máscara e cantar a uma só voz a Grândola. Não vai espantar a doença, mas vai tornar-nos melhores pessoas. Eu protejo-te a ti. Tu proteges-me a mim. Depois da máscara esta será a “Terra da fraternidade”. Vila morena, nunca esquecerei que “jurei ter por companheira/Grândola, a tua vontade”. “O povo é quem mais ordena”.

 

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