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A língua onde moramos

Aproxima-se o dia 10 de Junho, no qual comemoramos o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Neste contexto pareceu-me fulcral falarmos do aspecto mais extraordinário e basilar da portugalidade, que é a nossa lindíssima língua portuguesa.

Falada aproximadamente por uns impressionantes 261 milhões de pessoas no mundo, o que a coloca no 4.º lugar no ranking das línguas com maior número de falantes, segundo Camões- Instituto da Cooperação e da Língua, é utilizada não somente nos países onde é língua oficial, mas também nas comunidades de migrantes desses países. Está assim num espaço pluricontinental, não sujeito a barreiras ou fronteiras, pelo mundo todo a enriquecer-se e a fazer-nos sentir em casa sempre que, noutras paragens, por entre a multidão, a ouvimos.

Quando nascemos é o primeiro património que nos é entregue, ainda nesse momento tão primordial, pelos nossos pais. E esse património não se esgota como conjunto de signos ou como um sistema linguístico, é acima de tudo um arte factus cultural, riquíssimo pelos seus séculos de História e pelas inúmeras histórias de Homens que lhe cabem dentro e que a edificam, reproduzem e difundem quotidianamente. É um reduto de História, memória e vivência humana, que determina uma boa parte do que somos. Nesse quesito tivemos imensa sorte – ela é terra fértil que nos permite ser muitas coisas ao mesmo tempo, não nos limita, pelo contrário, quanto mais nos deixamos apaixonar por ela e nos orgulhamos de a ter mais ela nos engrandece.

Vasco Graça Moura escreveu: “Não és mais do que as outras, mas és nossa, e crescemos em ti. Nem se imagina que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa…”. E ela é, assim, cravo e canela, lima-limão, salgada e doce. E é macia como a melhor seda. Está cheia de sol, e de cheiro a mar, e de sonoridade. Uma sonoridade alheia a preconceitos, repleta de mestiçagem, de diversidade, de fusão, tal como o povo que a fala. É do fado e do canto alentejano, é do samba, da bossa nova e é da morna, da marrabenta e do semba, e é do hip hop…

A língua portuguesa não tem sotaque, nem precisa dele. Nem precisa que haja quem decida mudá-la por decreto. A língua muda per si, porque mudam as pessoas que a falam e as sociedades onde é falada e ela não lhes é impermeável. Não tem donos (desengane-se quem o considere!), mas é de todos nós.

Pedro Lamares, numa talk no TEDexOPorto em 2015, disse: “Eu nasci no país da saudade. Ou, muito maior que o território geográfico de um país, eu nasci na língua da saudade”. A língua é assim lugar (onde nascemos) e, por isso, é lugar de pertença, um território todo onde nos sentimos em casa, onde voltamos a casa e onde a partir de qualquer lugar do mundo podemos afirmar e reconhecer a nossa cultura, tão bem representada por esse signo único e exclusivo – a saudade.

Apraz-me muito esta ideia da língua como Território.

Fui pesquisar e encontrei no website da Academia de Escolas de Arquitetura e Urbanismo de Língua Portuguesa o seguinte: “Habitamos espaços e paisagens, mas habitamos também a nossa língua, o universo em que se constroem e viajam as nossas ideias e significados, a narrativa das nossas experiências, a comunicação do que aprendemos, a quem queremos ensinar, estabelecendo a construção coerente da Cultura.” Assim, a língua é o lugar interior onde vivem os nossos sonhos e ideias e onde guardamos as nossas memórias e as narrativas mais pessoais, e por isso é o lugar onde nos encontramos connosco, mas é também, e por excelência, o território da experiência colectiva, onde comunicamos e interagimos com o outro, onde nos reunimos para festejar e preservar a cultura que herdámos, lugar de socialização e recriação de laços e valores, de identidade e de comunhão.

Sobre o recente projecto Língua Franca, dos rappers brasileiros Emicida, Rael e dos portugueses Capicua e Valete, Capicua referiu: “Não há fronteiras aqui e a língua funciona assim como uma zona franca, o português é o território onde todos nos encontramos, nesta mistura de sotaques e modos diferentes de o falar” (DN, 4.06.2017). Isto é, a língua é um espaço de convergência de similitudes mas também de diferenças, de reconhecimento e respeito pelo outro, de afirmação da diversidade, e num sentido mais lato, de (re)criação de comunidades, o que ultrapassa largamente limites geográficos, de cor, sexo ou sotaque.

Estas diferentes referências remetem-me constantemente para a belíssima afirmação do Fernando Pessoa (como Bernardo Soares no Livro do Desassossego): “Minha pátria é a língua portuguesa”. E quando vivemos a experiência da emigração, ela tem realmente um efeito maior, ainda mais profundo, ainda mais duradouro.

A nossa língua é lugar, território, chão, casa, identidade, passado mas também futuro, comunidade, amanhã, memória e história. Um filósofo alemão disse: A língua de um povo é a sua alma. Sem dúvida que ela o é. A nossa alma.

Apesar de tudo, ela também é frágil e indefesa na falta de cuidado que por vezes lhe concedemos. Saibamos falá-la para além das palavras do dia-a-dia. Ousemos lê-la, que bem merece, pois está repleta de extraordinária literatura, quase sempre mais valorizada fora de portas. Aventuremo-nos a ouvi-la cantada nas suas diferentes musicalidades e ritmos. Valorizemo-la! E defendamo-la de quem não a respeitar tanto. Não tenhamos vergonha de, em todas as idades, a (re)aprender. E ensinemo-la especialmente aos nossos filhos para que eles também habitem esta casa, este chão, esta pátria que também é deles.

(…)Amo o teu viço agreste e o teu aroma

De virgens selvas e de oceano largo!

Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: “meu filho!”(…)

Olavo Bilac

(Poeta Brasileiro)

 

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