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A doença e o espírito, ou o caminho de uma demonização social

Vai longe o excecional ensaio de Susan Sontag sobre “A Doença enquanto Metáfora”, esse brilhante texto redigido durante a recuperação de uma doença grave e prolongada da autora. Hoje, muito tempo depois de a esse texto se terem vindo juntar as indagações sempre demolidoras de Foucault, a doença é já objeto num horizonte onde a ideia de degradação, física ou mental, se cruza com a de pecado e a de culpa, de eleição ou de possessão.

Cruzei-me com os horizontes teóricos de Sontag após a lecionação de um curso breve sobre exorcismos, e da subsequente escrita de um pequeno texto sobre o mesmo tema. Percebi como fomos, durante milénios, educados a ver a doença, não só como uma falha, mas mesmo como uma demonstração de uma qualquer natureza demoníaca em nós.

Ter uma verruga no nariz, como tão tipicamente apontamos às bruxas, era a marca de que uma mulher estava possuída por um demónio, tendo-se a ele entregue ou sido conquistada – era seu agente e ator. Uma malformação ou a cegueira, simplesmente, era sinónimo de pacto demoníaco, e mesmo quando no século XIX se quis encontrar uma forma de mostrar uma criança a mentir, foi pela deformação do narizito do seu pequeno que Jepetto percebia o engano.

Para muitos dos movimentos religiosos nascidos nos Estado Unidos da América no séc. XIX e início do séc. XX, o mundo está em constante luta entre o bem e o mal, numa visão maniqueísta levada ao extremo. E o horizonte dos exorcismos é, de facto, um mundo teológico levado ao limite: não é por acaso que é no final de um exorcismo por si efectuado, que Jesus tem uma das suas afirmações mais duras nesta separação entre o bem e o mal. Diz o Jesus em Mateus 12.30: “ Quem não é comigo é contra mim” – estamos muito longe do Jesus que é amor e perdão, mas o contexto é o de um exorcismo.

As igrejas neopentecostais, nascidas já nos últimos quarenta anos, levam esta forma maniqueísta de ver o mundo, o equilíbrio entre caos e ordem ou entre dons do Espírito Santo e a possessão demoníaca, ao limite do espetáculo e da fidelização dos seus membros. Nas suas teologias é frequente encontrarmos a justificação de todos os males dos indivíduos através de duas razões: ou porque não têm fé, ou porque, não tendo fé, estão possuídos pelo demónio. Neste segundo caso, é uma “doença espiritual” o que para esse quadro religioso está em causa.

Assim, é frequente que estas igrejas apresentem ritos semanais de exorcismo. Num contexto cénico altamente elaborado, onde muitas vezes estão presentes elementos de uma clara hipnose colectiva, os pastores realizam, à frente de toda a audiência, exorcismos em catadupa, provando aos seus crentes que, de facto, uma boa parte da humanidade está possuída.

Nestes Rituais de Descarrego a oração é o meio que leva a que os demónios se exteriorizem, assim como o toque sacralizado do próprio Pastor que percorre todos os presentes em busca de possuídos.

Em muitas entrevistas, intervenções e escritos de Edir Macedo, assim como muitos outros líderes de igrejas do modelo semelhante, a doença, enquanto alteração fisiológica, é causada por um problema espiritual. A cura, o centro cada vez mais recorrente neste modelo de igrejas (neo-iurds), surge fortemente associada à junção entre a leitura do que é espiritual, isto é, demoníaco, e a superação da doença.

Já longe de Sontag, a doença deixa de ser, aqui, uma metáfora e já é o centro de uma pastoral, de uma relação de dependência criada entre a igreja e os seus membros. No momento em que toda a envolvente pode ser demoníaca, a fobia do que não demonstra a suposta presença de Deus resulta na afirmação do medo, da separação face à sociedade, na demonização de tudo e de todos os que não são “crentes”.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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