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A diferença está na gargalhada

Há apenas um responsável por esta crónica, e esse responsável não é, com toda a certeza, o autor que vai carregando nas teclas do computador para formar as palavras que as mesmas dão à estampa no ecrã. Não, o autor apenas deixa que o sentimento de nostalgia flua pelas veias do seu corpo, passe pelo coração, onde a partir deste os sentimentos se deixam catalisar para depois explodirem nas emoções com que se formarão as palavras que compõem este texto.

No entanto, às vezes não nos podemos deixar levar totalmente por essas emoções, como esta por exemplo, onde cabe bem neste texto os dizeres do povo quando afirma que é preciso, em certas alturas da vida, fazer das tripas coração, e dar a volta ao texto. Que é como quem diz, da nostalgia eliminar o sentimento de tristeza e saudade que a maior parte das vezes esta nos traz, e da saudade lembrar apenas os momentos que de uma ou outra maneira nos fazem sorrir, às vezes, rir às gargalhadas, receita que segundo alguns entendidos na matéria afirmam ser um bom remédio para os problemas de fígado. Mas, se rir às gargalhadas não faz bem ao fígado, certezas temos que faz bem à alma, afugenta os maus agoiros e rejuvenesce.

Não poderia falar de gargalhadas assim sem, ao eliminar da nostalgia o sentimento de tristeza e transformá-lo em alegria, que à memória me viesse alguns dos protagonistas que a saudade da qual não me posso livrar apesar de tudo, me fizesse lembrar de momentos que agora, passados tantos anos por eles, os considere como relíquias de uma preciosidade sem igual.

Como não me considero autor desta crónica, sou apenas o veículo de inspiração de uma nostalgia que manipulei, vem-me à memória uma dessas relíquias do passado onde um dos protagonistas é o amigo Raúl Reis, o Zé de S. Tomé, e sem certezas do que afirmo, pela simples razão de que já lá vão mais de quarenta anos passados, o Diogo, uma vez que era nessa altura e durante muitos anos que se seguiram, um dos meus melhores amigos.

Dos fragmentos desta pequena história, do que me lembro, é que frequentávamos o segundo ano do ciclo preparatório, estávamos numa aula de trabalhos manuais, e o Raúl, no seu jeito único, que era o de um puto alegre, de uma gargalhada espontânea e que irradiava sempre boa disposição, em suma, contagiante, contava que na noite anterior um casal amigo dos pais havia estado lá em casa porque era o aniversário do amigo do pai do Raúl, e o pai ao dar os parabéns ao amigo terá dito…”Desejo que dures tantos anos como quantos palmos tem a ponte 25 de Abril.” E dito isto, o Raúl desatou numa gargalhada, a tal gargalhada única, só sua, tão contagiante que, pela parte do Zé de S. Tomé e do Diogo, (se é que o Diogo se encontrava nesta cena) não sei, mas pela minha parte, fartei-me de rir, não porque nessa altura, confesso, tivesse achado alguma piada à história, mas sim porque a maneira como o Raúl a contou e a sua reação, foi como tirar a cavilha de uma granada e lançá-la às cegas, salvo seja a comparação.

Como na altura o Zé de S. Tomé tivesse ficado por uns segundos a coçar a nuca, como quem procura no arranhar do caco a resposta para algo que parecia ter sido engraçado à brava, mas que ele não havia percebido muito bem, o Raúl voltou a atacar…”Já viste, se ele durar tantos anos como quantos palmos tem a ponte 25 de Abril, nunca mais morre pá…”

E não é que o Raul estivesse, (penso eu) a desejar a morte prematura do amigo de seu pai, mas por vezes, até a eternidade nos parece tempo de mais…

Esta pequena passagem, mesmo dos quarenta e alguns anos que dela nos distancia, ficou-me gravada na memória, e se assim foi, alguma razão teria havido. É que, a vida, o que é se não as memórias, boas ou más, dos momentos e das pessoas com quem nos cruzamos, dos lugares por onde palmilhamos o respirar do ar com que crescemos e nos fizemos as pessoas que somos.

Da história que o Raúl contou, durante anos dela retirei a tal frase que muito o fez rir, e a nós os seus amigos, por acréscimo, e usei-a muitas vezes quando desejei os parabéns a amigos e familiares, “Feliz aniversário e desejo que dures tantos anos como quantos palmos tem a ponte 25 de Abril”.

De resto, esta história faz-me lembrar a anedota do Mandinho, não que nelas haja uma qualquer semelhança de conteúdo, mas sim porque uma e outra foram, no que diz respeito ao efeito rir como resultado desse mesmo conteúdo, de efeito retardado.

Mas, para que se entenda melhor esta afirmação teremos que conhecer a anedota do Mandinho contada tal e qual como foi contada há mais de quarenta anos. “Dois malucos num manicómio chegaram à conclusão de que estavam curados. Para provar a sua teoria decidiram fazer um teste a eles mesmos. Meia dúzia de tijolos empilhados em duas colunas separadas, uma tábua por cima a uni-las a improvisar um balcão. Balcão de farmácia convém dizer. O maluco cliente chega perto do balcão e diz ao maluco farmacêutico, – 1 quilo de cimento por favor… – responde o maluco farmacêutico, – traz frasco…?

E a anedota do Mandinho foi apenas rematada por uma gargalhada. A razão pela qual nessa altura não esbocei sequer um sorriso, por muito amarelo que fosse, é que havia uma enorme diferença entre a gargalhada do Mandinho e a do Raúl. A gargalhada do Mandinho apesar de enfadonha era também sem vida. A do Raúl era uma gargalhada com vida. Uma gargalhada que se poderia assemelhar a uma espécie de música de fanfarra onde as cornetas, o bater do bombo e dos pratos, culmina num fim apoteótico espalhando alegria num raio de quilómetros.

Não obstante o exagero, serve a comparação para justificar a minha risada no que diz respeito à história do Raúl, que em termos de entendimento imediato, justificasse uma espontaneidade de gargalhada do que o conteúdo da mesma assim o permitisse, porque a graça genuína da história bem como da anedota só veio muito mais tarde, muito embora, na anedota do Mandinho, confesso que só achei piada à mesma cerca de dez anos depois.

Aqui se prova, penso eu, que uma boa história ou uma boa anedota pode espalhar um leque de boa disposição e alegria se o contador tiver a capacidade de ele mesmo soltar uma gargalhada genuína, contagiosa. Assim como a do Raúl.

Já agora, convém esclarecer que me refiro ao Raúl de onze ou doze anos de idade, o mesmo Raúl a quem um dia eu cheguei a desejar enfiar-lhe um braço pelas goelas abaixo, e virá-lo do avesso, mesmo sendo bons amigos nessa altura, mas ele teve o descalabre de falhar um golo com a baliza aberta. E nessa altura, com doze anos de idade, essas coisas mexem connosco…

O Raúl Reis de agora, continua a ter a minha estima e amizade que será sem dúvida eterna, mas porque a vida tem destas coisas, mesmo trocando frases de email um com o outro, há anos que não nos vemos pessoalmente, por isso, a gargalhada que dele me lembro é a do puto de onze ou doze anos de idade. Talvez onze e doze, uma vez que frequentamos na mesma turma dois anos de ciclo preparatório.

Reafirmo o que disse no início desta crónica, se há um responsável pela mesma, esse responsável é a nostalgia que ao despertar no meu coração este sentimento forte de saudade, eu a manipulei e converti em memórias agradáveis, porque para tristezas já bem nos basta os dias tácitos e arcanos com que todos temos vivido nos últimos tempos.

António Magalhães  

 

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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