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A arte de afirmar

Vivemos tempos em que todos nós ganhamos o direito de afirmar. Os custos desta afirmação passam, não raras vezes, pelo senso comum que pouco ou nada tem de crítico. A normalização da boçalidade é tão evidente que se entranhou no dia-a-dia, sem qualquer possibilidade de análise que nos faça ganhar a certeza da argumentação. Ou seja, vale tudo. Seja nas redes sociais ou noutra qualquer artimanha encoberta de direito de opinião personalizada pública, avançamos perigosamente para a arte de afirmar, mesmo que isso signifique não ter a mínima consciência do que se está a dizer.

Esta arte está intimamente ligada com a forma como somos moldados, num mundo em que tudo é descartável e rapidamente substituído por outra qualquer afirmação, mais conhecida por juízo de valor. Assim, preferimos ajuizar valores em detrimento de factos. É-nos mais fácil levar a cabo esse acto quase heróico de sobre tudo ter opinião: sem memória e sem história, sem contextos e sem circunstâncias que nos impedem de pensar melhor. Tudo parece resumir-se a percepções cegas e a análises vazias.

A percepção do que nós somos e da personalidade dos outros é uma construção mental. Como tal está sujeita a erro. Isso significa que podemos estar uma vida inteira a definir a personalidade de alguém sem nos apercebermos da totalidade do que é ser pessoa. Descrevemos alguém pelos traços de personalidade. Nós recebemos, seleccionamos, memorizamos, transformamos e organizamos informações que serão construídas sob a forma de representações da realidade. O modo mais simples e eficaz de as gerirmos é categorizando-as.

A coerência é fundamental para a existência da categoria. A simplificação das informações facilita a conformidade que nasce das “teorias ingénuas do mundo”, como referem Leyens e Yzerbyt. Esta visão é reforçada por Moscovici quando escreve que a representação social é “um instrumento próprio para categorizar pessoas e os comportamentos”. O quotidiano é interpretado e pensado através das representações sociais que se transformam num modo de conhecimento social. Não é simples reprodução, mas é antes uma construção que implica autonomia e fundação individual e colectiva. A partir de traços concretos entram em jogo o individual e o social. É o momento da categorização, que nada mais é do que uma edificação ilusória coberta de elementos culturais, sociais e ideológicos. São essas categorias que determinam e presidem os nossos comportamentos.

Assim, e para não nos perdermos, a arte de afirmar passa pelas representações sociais criadas a partir de categorias que nos orientam no tempo. Os chamados “scripts”. Assemelham-se a guiões ou roteiros de comportamento. Os “scripts” são histórias estereotipadas, úteis na vida quotidiana, mas que desprezam outras informações porque não exigem, muitas vezes, o esforço semântico. Neste sentido, a categorização, seja por representação social ou por “script”, permite-nos “dizer muitas coisas a partir de poucos elementos e conhecer ou reter poucas coisas a partir de muitos elementos” (Leyens). Acabam por ser uma forma de fé cuja crença interfere com as regulações sociais. Tais crenças gerais são denominadas de teorias implícitas.

Entre a adopção do ponto de vista natural e do ponto de vista teórico temos a diferença entre o senso comum e a distância dele, isto é, temos a capacidade de olhar criticamente o senso comum de modo a poder desconstruí-lo. A recusa deste olhar crítico faz nascer a rotulação e a arte de afirmar. Rotulamos porque precisamos de avaliar as nossas acções e as dos outros. O pragmatismo do senso comum não é suficiente para percebermos o facto de que existem categorias e representações sociais que produzem rótulos e estereótipos. Também é insuficiente para percebermos a sua resistência à mudança.

Na vida quotidiana agimos em função de ideias preconcebidas. Os “pré-conceitos”, as representações sociais, os estereótipos, os “scripts” e as próprias teorias implícitas são determinados pelas nossas motivações e pelo nosso funcionamento cognitivo. Neste sentido, seleccionamos determinadas informações em detrimento de outras conforme “nos dá jeito”. A estereotipia serve para escarnecer aquilo que receamos. Daí que, em grupo, a adopção comum e acrítica nos dê sossego porque assegura a afiliação social.

Na estereotipia fica claro que as razões são as nossas. As causas são os outros. Não exigimos indicações. Intimamos elementos determinados que prognostiquem e predigam comportamentos, tanto os nossos como os dos outros. Como refere Leyens, “Há muitas pessoas que preferem assimilar os factos às suas teorias favoritas em vez de as adaptar aos factos.” Vivemos tempos em que não são os factos que engendram ou destroem as nossas crenças. São as nossas crenças que geram os factos. Foi e é assim que a arte de afirmar separou o homem dos outros e de si. Basicamente, é por isto que podemos ser boas ou más pessoas. É necessário pensar nisto antes de recorrermos à arte de afirmar. Se um dia coloquei a possibilidade de sermos marionetas de Deus, hoje tenho a certeza que somos escravos do nosso próprio senso comum.

 

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