
Na última década o problema da disponibilidade de habitação acessível, compatível com o salário auferido pelos cidadãos, agravou-se notavelmente. Em Portugal e não só. Metidos no nosso pequeno retângulo, no canto mais ocidental da Europa, com órgãos de comunicação social falidos, sem recursos para proporcionar aos portugueses uma visão mais ampla do mundo através de notícias e reportagens internacionais, achamos que o problema da habitação (grave) que sofremos é um exclusivo nosso, derivado essencialmente da inépcia inenarrável de sucessivos governos, sobretudo do PS, que governou Portugal no grosso dos últimos 30 anos, e não fez absolutamente nada para proporcionar habitação digna e acessível, ajustada ao salário dos portugueses. Salário que obviamente não acompanhou a evolução do preço do metro quadrado (venda e renda) no mercado habitacional. Tive pena de não ter podido participar no Congresso Internacional de Habitação em Oeiras, por estar ausente do país. Este evento, subordinado à temática “o futuro da habitação “, teve dois dias de debates e reflexões sobre habitação pública, políticas sociais e sustentabilidade na habitação.
Espero com bastante interesse a documentação com as principais conclusões para ver se uma vez mais é fogo fátuo para enganar os eleitores em ano de eleições legislativas e autárquicas, ou é para valer. Mas duvido que as conclusões saiam muito diferentes da verdadeira raiz do problema, se as discussões foram honestas: o Estado (central, mas sobretudo autárquico) demitiu-se de uma das suas principais funções, a de proporcionar casa decente ajustada ao poder de compra dos cidadãos, achando que o mercado (neste caso banca, promotores e construtoras) resolveriam, por delegação, o problema. Pedro Nuno Santos atirou recentemente à cara de André Ventura o bitaite de que ele estaria com saudades de Salazar. Eu acredito que não será só ele, há centenas de milhar de portugueses que terão saudades, particularmente os que não têm casa.
A última vez que programas de habitação pública decente e acessível funcionaram foi justamente durante o consulado governativo de Salazar. Os bairros sociais que hoje existem, e que hoje, face à evolução do mercado, de social já nada têm (as casas e apartamentos estão em zona prime, como o Bairro de Benfica em Lisboa, ou o de Aldoar no Porto, onde as casas antes de remodelar atingem os 500/600 mil euros, e com obras feitas vão para cima do milhão !) foram todos construídos antes do 25 de Abril de 1974. A democracia falhou em toda a linha em manter um pipeline aberto de construção de habitação pública ajustado às necessidades variantes do mercado, sobretudo neste século XXI, em que as transformações económicas e sociais foram gigantescas.
Durante o consulado de Salazar não se discutia, fazia-se. O erro da nossa democracia, nesta área e noutras, talvez por inexperiência, talvez por estupidez, foi não haver sintonia entre os principais interlocutores políticos saídos das primeiras eleições livres, definindo as áreas estruturantes, como a da habitação, em que obrigatoriamente se pactaría um acordo de regime multi-legislaturas. Nenhum governo isoladamente, nem os ineptos do PS, que governaram em 15 dos últimos 20 anos, consegue ter tempo suficiente no poder para levar com êxito uma política pública de habitação ajustada às necessidades do país. Salazar teve mais de 40 anos consecutivos para o fazer.
A prova está precisamente em que no pós-25 de Abril, com exceção de Oeiras, onde Isaltino teve uma série de mandatos em que pôde executar a sua visão política de construção de habitação pública acessível, o país falhou rotundamente no desenvolvimento de políticas públicas de habitação. Nas áreas estruturantes como habitação, saúde e educação não se faz política, fazem-se acordos políticos amplos que garantam estabilidade e continuidade através de sucessivas legislaturas. Decidi abordar o tema da habitação estando aqui no México porque, em circunstâncias semelhantes, o problema da falta de habitação decente a preços compatíveis com os salários auferidos pela população é universal. A tabela que companha este artigo está na primeira página do jornal mexicano Reforma de 19 de Abril. Mostra que o aumento médio do preço do aluguer de casas nas principais cidades e zonas limítrofes do México variou entre 33 0/0 e quase 80 0/0, se se considerar zonas não refletidas na tabela. As causas mencionadas no artigo que acompanha esta tabela são muito semelhantes às que podemos reconhecer em Portugal:
1) o processo de gentrificação acelerado, que fez valorizar zonas anteriormente desprezadas, encarecendo o preço do metro quadrado para renda e venda, e levando ao deslocamento dos moradores tradicionais, sem recursos para pagar o novo patamar de preços.
2) o aumento do turismo, e a chegada das plataformas tipo Airbnb, que rendem incomparavelmente mais aos proprietários do que destinar as casas para aluguer de longo prazo a locais. Tal como no resto do mundo, também no México há já estabelecidas restrições e proibições às plataformas de aluguer temporário turístico em várias zonas centrais das cidades. Já se se cumprem ou não …
3) a imigração, que no caso do México é de natureza radicalmente diferente da nossa. Em Portugal entraram centenas de milhar de imigrantes para trabalhos não qualificados, sem qualquer controlo. No México entraram num processo ordeiro e com a apresentação prévia de toda a documentação requerida, certificado criminal incluído, centenas de milhar de técnicos e especialistas que vieram com o “nearshoring”, a deslocalização de indústrias da China (e do resto da Ásia) para o México, ficando mais próximas do mercado americano, e aproveitando a mão-de-obra e os custos de contexto baratos.

Portugal e México, dois países nos antípodas, com problemas muito semelhantes no mercado da habitação pública. E em causas e origens dos problemas muito semelhantes também. Espero que em Portugal tenhamos aprendido.
José António Sousa