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2023: o ano que precisamos de ser solidárias

Em França reza a tradição que temos até ao último dia de janeiro para apresentar votos de boas entradas e felicidades a todas e todos. Como ainda vou a tempo, para este ano de 2023, com tudo o que ele acarreta, quero deixar-vos votos de Bom Ano, para um ano que precisa de mobilizar toda a nossa solidariedade. Pela paz, pelas mulheres, pela democracia, pela sustentabilidade do nosso planeta.

É eufemismo quase dizer que o Mundo está barulhento e desassossegado. Noite e dia chegam notícias belicistas de toda a parte. A grande História voltou violenta e repentinamente a ameaçar-nos de morte, logo a seguir a um vírus que soube variar para matar. E mesmo nesta Europa onde ainda há pouco tempo as promessas de paz perpétua eram impensáveis.

Em especial, para nós, mulheres, o respeito do nosso direito à emancipação, no duro caminho da liberdade onde os passos que damos são fácil e propositadamente calcados. A Constituição dos países onde a democracia vive garante a nossa igualdade. Porém, em tempo de tantas incertezas, o século XXI está a trair sem vergonha as conquistas de dignidade e de igualdade para uns e sobretudo, para todas nós, neste mundo de barulho ensurdecedor. “Será nascer mulher o pior dos castigos?” perguntava Federico Garcia Lorca no século XX.? Será ainda o século XXI tão teimoso neste fado triste?

Começando por janeiro 2023 já mordido, desejava que a neve que já nem cai onde costuma cair, caia de verdade acompanhada pela música dos sininhos badalando do fundo das gargantas das meninas felizes mas que não venham nunca fardar os resmungos agonizantes das alunas ucranianas sepultadas sob os escombros de sua escola.

Para fevereiro 2023, que as panquecas de Carnaval saltitem para regozijar o paladar das mães que as moldam com amor para os seus filhos, na primavera precoce, longe da saída das igrejas birmanesas pilhadas, onde os assassinos dançam como fitas de confetes de renda preta sobre o corpo inerte da sua última dona.

Para março 2023, que as inocentes se percam, durante tempo indeterminado, que se percam mesmo na procura alegre de ovos de cacau num sussurro gourmet mas que não se iludam por alguns de casca metálica a brilharem nos falsos esconderijos da terra cambojana prontos a explodirem.

Para abril 2023, que o perfume dos cravos encarnados orgulhosos, os do nosso lindo mês madurado de azul eterno se difunda até ao Afeganistão para que as suas mulheres possam voltar a encontrar o caminho do trabalho e da universidade, a sua silhueta libertada do jugo da vergonha e da morte, gritando « Em cada rosto igualdade » !

Para maio 2023, que o 1 de maio seja festa sempre, haja flores para manifestar livremente em nome das causas que nos libertam das escravidões modernas do trabalho desumano, muito ao contrário do que sofrem as nossas irmãs Uighurs na China condenadas à tarefa e marcadas pela força do selo da esterilidade.

Para junho 2023, que o Santo António cumpra o seu jeitinho de cupido porque o amor existe, em Lisboa e pelo mundo inteiro mas que deixe ressoar o ode à liberdade das mulheres que não sonham em casar, nem engravidar, que gritem o seu amor pelo seu corpo e que possam entoar a voz da escolha livre e da autodeterminação para lutar contra a injustiça que as unem às suas mais novas irmãs iemenitas apenas na doce puberdade contra velhos barões ao membro dilatado e sudado de lubricidade mórbida.

Para julho 2023, que as flores noturnas de outra noite revolucionária, no 14º dia de um país que entregou uma mensagem universal ao mundo, a mensagem da igualdade, não rivalizem nunca com os torpedos celestes ameaçadores da Coreia do Norte.

Para agosto 2023, que as ondas salgadas do mar do nosso querido mês de agosto cantem sempre para nós, que as mesmas ondas venham picar os olhos das senhoras que se perderam demasiado tempo sem medo da imensidão do mar, que os raios do sol venham atormentar a sua pele enternecida pelo torpor do fim do verão, para que estas pisaduras suaves se substituam às dores do querosene e do ácido que corroem o punido lindo rosto das esposas indianas.

Para setembro 2023, que os riachos vermelhos venham humedecer com néctar as nossas gargantas secas mas que não afluam no rio do sangue das excisões das virgens guineenses.

Para outubro 2023, que as nossas memórias se deitem nos túmulos enfeitados pelos nossos antepassados mas que não se percam nunca no anonimato dantesco das valas comuns do Burkina Faso.

Para novembro 2023, que os fogos da vida se acendam na noite mais escura, iluminando a dança da esperança renovada contra o massacre das nossas avós congolesas na fornalha da sua casa em chamas.

Terminando, para dezembro 2023, que seja viva e ainda deputada contra os golpes repetidos, a uma estabilidade no entanto limpidamente votada. Sejamos envelhecidos de um ano de conversas e debates que honram a democracia, autores de alterações a leis ou de novas redações progressistas em nome do povo que é “quem mais ordena”, e quem mais ordena também no meio dos milhões de compatriotas que residem fora de Portugal com um coração que tudo aturou, sem parar, para continuar a ser português. Sejamos envelhecidos de uma ruga da expressão feliz porque voltou a paz na Ucrânia, porque os barulhos do mundo calaram, porque redistribuiram-se riquezas com sentido de justiça num quadro de crescimento perene que voltou para ficar, porque aprendemos a mimar a casa terra tanto como a nossa própria vida, porque o céu azul de Portugal entoou o grito que veio do sacrifício do ventre do Irão:

Mulheres, Vida, Liberdade!

Meilleurs vœux, Bom ano!

Nathalie de Oliveira

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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