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Um insulto à inteligência do espetador

Há vinte e dois anos, um jovem realizador norte-americano apresentava ao mundo cinéfilo uma obra que iria marcar a maneira de fazer cinema. Independentemente de outros critérios, mais subjetivos, Pulp Fiction revelava-se uma obra de originalidade formal indesmentível. É certo que, já então, assomava a obsessão do autor pelas cenas de choque, profusamente adubadas com execuções sumárias, e muito sangue e miolos espirrando para a cara de executores e outros protagonistas. Porém, a novidade da concatenação cronologicamente ilógica dos episódios, obrigando o espetador a participar na construção da história, permitia secundarizar a banalização da violência, aliás atenuada por uma ironia inteligente.

Depois de Reservoir Dogs (Cães Danados, em Portugal), realizado dois anos antes, Pulp Fiction consagrava Quentin Tarantino enquanto jovem realizador independente.

O problema é que a persistência numa mesma linha arrisca-se a erodir o mérito granjeado pela originalidade. Tarantino repetiu o mote em Natural Born Killers (Assassinos Natos), de cujo guião foi autor. E todas as mais destacadas das suas obras subsequentes apresentaram um fácies de violência gratuita, de cenas-choque a raiarem o repugnante. Em exibições de Kill Bill, alguns espetadores abandonavam a sala. Também Inglourious Basterds (Sacanas sem Lei), de 2009, beneficiou com a magistralidade de algumas interpretações e com a caricatura do belicismo, mas pouco mais mérito teve.

Veio, mais recentemente, Django Unchained (Django Libertado), onde, a par da violência banalizada, Tarantino enveredou pelo sempre emocional tema dos ressentimentos raciais nos Estados Unidos. A verdade é que os norte-americanos, afrodescendentes ou eurodescendentes, estão condenados a entender-se — porque não é crível que qualquer das comunidades consiga (ou sequer deseje) eliminar a outra ou almeje um ambiente de tensão e desconfiança permanentes. Ora, duvida-se, no mínimo, que a harmonia e o entendimento mútuo se alcancem mediante um repisar recorrente do ódio que o racismo e a escravatura semearam, mediante o inflamar da ferida. Quantas vezes terá de ser agitada essa fatura (nunca suficientemente saldável)? Quando logrará a autoflagelação saciar o que haja a saciar?

A receita repete-se na mais recente obra de Quentin Tarantino, The Hateful Eight (em Portugal, Os Oito Odiados, numa má tradução, pois hateful não é o mesmo que hated; não faltariam alternativas mais corretas, como odientos, abomináveis, execráveis).

Poucos anos após a Guerra Civil dos Estados Unidos, oito «odiosos» encontram-se casualmente nas montanhas do Wyoming, num albergue isolado pela neve. E começam a suceder-se cenas da mais brutal e repugnante violência, como, por exemplo, o envenenamento de alguns dos «odiosos», que despejam abundantes vómitos de sangue para a cara de outros. Há miolos a estoirar, há até uma castração a balázio. E, uma vez mais, não falta a última obsessão do autor: o revanchismo negro contra os brancos, que para ele raramente parecem não ser «maus».

Ponto «alto» da orgia sadomasoquista: um dos personagens, Marquis Warren (o único negro, interpretado por Samuel L. Jackson), antigo major tornado caçador profissional de prémios, descobre que um dos outros é um general reformado do exército sulista, Sanford Smithers. Começa por se mostrar solícito com o ancião, servindo-lhe um prato de comida. Depois, diz-lhe que se cruzara com o seu filho, que Smithers procura. Mas esse filho já não era vivo: morrera no dia em que Warren o conhecera. Conta, com toda a descontração: o filho de Smithers era também caçador de prémios, e procurava precisamente capturar o negro Marquis Warren. Mas este antecipara-se-lhe, dominara-o e fizera-o depois caminhar vários quilómetros, completamente nu e de braços no ar, pela neve, à frente de uma arma aperrada (a cena é exibida em flashback). E, quando o filho de Smithers lhe implora um cobertor, Warren promete-lho em troca de uma felação, que frui rindo alarvemente; por fim, o «cobertor» é uma bala nos miolos. Claro que, para Tarantino, um personagem como o general Smithers merecia que lhe pormenorizassem despudoradamente a morte do filho, pois teria matado muitos pretos durante uma qualquer batalha da Guerra Civil. Como remate, Warren dispara sobre o velho a sangue-frio, a pretexto de que este, no final da narração, tentara sacar de uma arma.

Se por pornográfico ou obsceno entendermos o que se destina meramente a excitar emoções primitivas, sejam elas de lascívia ou de sadismo, esta obra de Tarantino mereceria, sem dúvida, um galardão. Porém, no âmbito restrito da arte cinematográfica, é tempo de repararmos que este «rei» vai nu.

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