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Ronaldo Cagiano: um escritor sintonizado com seu tempo

Nascido na cidade mineira de Cataguases, Ronaldo Cagiano viveu quase três décadas em Brasília, onde teve intensa atuação nos meios literários, alcançando repercussão nacional com sua obra, por diversas vezes premiada. No início dos anos 2000, mudou-se para São Paulo, onde viveu por dez anos.  Poeta, ficcionista e crítico literário, é dotado de aguda visão crítica das mazelas sociais de nosso país, aliada ao raro destemor em apontar com firmeza os responsáveis pelo empobrecimento cultural que hoje vivemos.  Seu livro mais recente é Eles não moram mais aqui, lançado em Portugal, país no qual passou a residir em 2017, ao lado da escritora Eltânia André, sua esposa.

Ter nascido e vivido até o início da fase adulta em Cataguases, terra de importantes figuras de nossas letras, contribuiu de algum modo para que se tornasse escritor? Que figuras de Cataguases exerceram influência que considera decisivas em sua formação como escritor? 

A tradição cultural e artística de Cataguases, principalmente no que diz respeito à vanguarda literária representada pela revista Verde (1927-1929), vertente mineira do Modernismo que eclodiu na Semana de 22, sempre foi um referencial importante para mim. Ressalto que desde cedo os ciclos culturais que a cidade experimentou, que tiveram início com o pioneirismo do cinema de Humberto Mauro, passando por outras vertentes estéticas não só na literatura, mas também na arquitetura e nas artes plásticas, sempre me intrigaram. Essas experiências osuadas e de renovação do pensamento cultural e artístico numa cidade do interior me intrigavam desde cedo, o que me fez buscar, compreender o porquê de uma cidade encravada e entravada nos contrafortes da zona da Mata Mineira, de perfil conservador e politicamente atrelada a oligarquias rurais e industriais,  conseguiu saltar à frente do tempo e da história com o surgimento de uma atmosfera intelectual jamais vista em outra parte. Tal aspecto, com certeza, despertou em mim o interesse pelas artes, particularmente pela literatura. O contato, ainda jovem, com alguns escritores e intelectuais da cidade alimentou ainda mais esse interesse e detonou uma grande motivação, considerando que, desde criança, ávido por leituras, também acabei me incursionando pelo mundo da criação, acalentando um projeto pessoal de escrevivências. Chamou-me a atenção o fenômeno local, da mesma forma que impressionou Ribeiro Couto, que naquela época proclamou, com admiração: “Todo o Brasil está perplexo: existe Cataguases!” Quanto a influências propriamente ditas, creio que não as assimilei tão prontamente em relação ao meu processo criativo. No entanto, a leitura das obras dos autores que despontaram a partir desse surto criativo, que trouxeram hálitos de ruptura e reação à arte convencional e elitista que se fazia até então, como verdadeiros gurus de minha geração, foram imprescindíveis referenciais na minha vida, na consolidação do leitor assíduo em que eu me tornaria mais tarde,  muito antes de nascer o escritor. Desses nomes, eu destacaria Rosário Fusco, Francisco Inácio Peixoto, Guilhermino Cesar e Ascânio Lopes, seguido de uma geração intermediária, representada por Francisco Marcelo Cabral e Lina Tâmega del Peloso. E outra, mais contemporânea, com a qual convivi mais pessoalmente, constituída por Joaquim Branco, Ronaldo Werneck, Fernando Cesário, Luiz Ruffato e Márcia Carrano.

Lembra-se de como despertou para o universo dos livros e das primeiras leituras? Alguma influência familiar importante? 

Desde os primeiros anos, ainda no grupo escolar, a leitura cruzou meu caminho, entrou definitivamente em minha vida. Primeiro, pela facilidade em escrever redações e pequenos textos pedidos em sala, que evidenciaram minha propensão à escrita, o que foi de pronto estimulado pelos professores. Nesse particular, o incentivo dos mestres José da Silva Gradim, Nilton Gunabaro Rossi e Márcia Carrano foram decisivos. Foi o insight primordial, esse empurrão que me deram, o despertar para a leitura e sua importância na formação do indivíduo. Subsidiariamente, a leitura de jornais foi outro ponto culminante nesse processo, já que eu não tinha nenhum estímulo próximo, seja da família ou de amigos de infância. Eu sempre detestei futebol, música “sertanojo”, conversa fiada e religião.  Ela foi definitiva na construção de meu arcabouço intelectual, já que pelas páginas do Jornal do Brasil, O Dia, Última Hora e O Globo, que meu pai comprava diariamente para a leitura dos fregueses de sua barbearia, eu tomei contato com o mundo, principalmente do universo literário, pois em suas páginas, sobretudo nos cadernos e suplementos culturais de fim de semana, descortinou-se para mim o ambiente sem fronteiras e instigante de livros e autores. Aos quinze anos, comecei a colaborar com o jornal  Cataguases, um hebdomadário oficial da Prefeitura, hoje centenário, com sua circulação ininterrupta, nele escrevendo pequenas crônicas e artigos de opinião.

Seu percurso nas letras foi da poesia para a prosa. Qual dessas linguagens lhe permite expressar-se com mais liberdade? 

Quando comecei a engatinhar na leitura, percebi isso, quando escrevi meus primeiros trabalhos, o que mais me chamava a atenção era a inflexão poética na própria prosa. Dos primeiros textos, o encanto veio com as crônicas de Rubem Braga, que descobri num livro chamado Programa de admissão, que era utilizado para estudos para a prova de ingresso no ginasial. Era um estágio intermediário que se fazia depois do quarto ano do grupo escolar, antes de nos matricularmos no ginásio, na quinta série. Esse período de preparação, uma transição indispensável na vida do aluno, que saía do ensino preliminar para o ginásio, onde outras demandas e exigências pedagógicas, didáticas e intelectuais seriam incorporadas, foi extinto pela famigerada reforma do ensino feita pelo Jarbas Passarinho, com o advento da Lei nº 5692/71, que liquidou o ensino público e levou a escola ao sucateamento que temos visto. Obra nefasta daquele ministro tacanho, de infausta memória, que mandou jogar às favas os escrúpulos de consciência, quando da decretação do AI-5. Pois bem, voltando ao assunto, os textos do autor capixaba (e hoje não consigo ver um cronista à sua altura, que escreva com a mesma envergadura poética e o mesmo senso de observação lírica ao flagrar o quotidiano) me impressionavam pela doçura, pelo lirismo, pela sensibilidade e poesia na captação dos instantes, do banal, da singeleza da vida. Mesmo ao falar de situações trágicas, de dramas domésticos, pessoais e urbanos, ele o fazia com cristalinidade e essa escritura diáfana, que suavizava os conflitos, conferia à leitura momentos de pura epifania. Percebi que a poesia seria meu caminho, então comecei a escrever os primeiros poemas de forma fixa, entre os quais os sonetos, em cadernos que eu comprava e guardava a sete chaves. Nessa época, caiu-me nas mãos um exemplar de Eu e outras poesias, de Augusto dos Anjos. Foi uma leitura impactante e reveladora aqueles versos de sombra e obscurantismo, aquela linguagem inusitada e meta-científica, pois, ao mesmo tempo que impunha um desafio de interpretação, remetia a um mergulho profundo nas questões existenciais. Quando descobri que Augusto dos Anjos, que havia morrido em 1914, estava enterrado em Leopoldina, cidade situada a cerca de vinte quilômetros da minha, foi outro susto. Então eu vi que ele estava ali, bem perto, ainda que enfurnado em uma lápide. Algumas vezes, em minha adolescência fui, à socapa, até a vizinha cidade (onde também viveu, durante cinco anos, o escritor português Miguel Torga), em minha bicicleta, apenas para ter a emoção de visitar o seu túmulo e compartilhar, ainda que metafisicamente, de seu universo.  Essa sensação também pude experimentar quando, há poucos anos, visitei a sepultura de Proust, no Père Lachaise, em Paris. Então, posso dizer que a poesia entrou primeiramente em minha vida, tanto como gênero, quanto como linguagem. E ao migrar para a prosa eu o fiz com a perspectiva de poder construir uma prosa poética, na linha do que disse Baudelaire: “Seja poeta, mesmo em prosa”. No íntimo, eu creio não haver limites muito distintos entre uma coisa e outra, porque o que me importa é o ritmo, a harmonia, a linguagem antes da história a ser contada. Talvez seja até artificial estabelecer confronto entre um gênero e outro, porque estaríamos falando de condições substantivas que dizem respeito à composição formal. Então, nada mais poético que o romance  Alegria breve, de Vergílio Ferreira, ou a epopéia roseana de Grande sertão: veredas. Ou, ainda, a monumental e desconhecida entre nós, a escritora portuguesa Maria Velho da Costa, que, ao lado de Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno, escreveu Novas cartas portuguesas, uma obra singular na história da literatura portuguesa, pelo seu empenho em destronar valores arcaicos, defender o universo feminino e combater a ditadura, numa releitura, nos tempos da ditadura salazarista, da obra mítica de Mariana Alcoforado. E nada mais prosaico que os versos de “Tabacaria”, de Pessoa, de “Terra Devastada”, de T. S. Eliot, ou “O Corvo”, de Edgar Allan Poe. E ainda “José”, do Drummond, para afirmar que em qualquer forma ou gênero, em qualquer vertente ou opção de escrita, o autor pode se sentir à vontade, desde que a sua escritura seja capaz de exprimir suas inquietações existenciais e estéticas, para as quais a expressão poética se presta a incorporar o espírito demiúrgico.

Apesar de ter saído do interior de Minas, sua obra revela um homem bastante urbano, mergulhado nas angústias daqueles que vivem nos grandes centros urbanos, tal qual podemos num de seus livros mais recentes, O Sol nas feridas. Concorda com esta ideia? 

Vim de uma cidade do interior, mas com uma estreita conexão com os grandes centros. Cataguases fica a duzentos quilômetros do Rio, a trezentos de Belo Horizonte, a cem de Juiz de Fora, a quatrocentos de Vitória e a seiscentos de São Paulo. Creio que essa proximidade também contribui para estabelecer a relação do povo com uma vida mais urbana e vínculos com sociedades mais civilizadas e evoluídas culturalmente, apesar dos contrastes que também encontramos nesses centros. Recebíamos os refluxos culturais do Rio e o contato com a metrópole permitiu uma assimilação das influências de uma cultura mais cosmopolita. Outro fato que não podemos desconhecer é que Cataguases se industrializou desde os primeiros anos do século passado, tornando-se uma potência têxtil em Minas, o que lhe conferiu ares de renovação na vida e na mentalidade, de certa forma refletindo na própria consciência das pessoas. Uma espécie de metáfora para os que teceram o destino cultural da cidade, pois havia um grande intelectual na cidade, escritor e comunista Francisco Inácio Peixoto, cuja relação com importantes personalidades da arte e das linguagens, funcionou como uma espécie de mecenas municipal, carreando para lá obras de Niemeyer, Djanira, Jan Zach, Emerick Mercier, Bologna, Bruno Giorgi etc. Mas a característica de prosa urbana que se evidencia na minha obra tem a ver também com a minha formação, pois saí de Minas com dezoito anos para morar numa cidade grande, Brasília, onde vivi por vinte e oito anos. E esse contato com uma vida mais dinâmica e efervescente, de valores, sentimentos e costumes menos ortodoxos, fizeram com que eu assimilasse muito rapidamente esse modus vivendi. A experiência existencial nesses mais de trinta anos vividos fora da vida provinciana, medíocre e alienante do interior, são mais fortes na minha personalidade e isso está impregnado na minha ficção que, em última análise, é espelho desse período, de onde recolho matéria e circunstância para minhas histórias. Então, minha produção literária reflete esse tempo e essa geografia  vividos e experimentados, do homem urbano, com suas questões, conflitos e confrontos bem distintos do homem do interior do Brasil, gente que sofre as angústias, demandas e exigências da vida veloz das grandes cidades, que nos transforma num ser  insularizado, premido por circunstâncias desconfortantes, hostilizado pela competição, pela solidão, pelo individualismo. Eu jamais saberia ambientar um conto no meio rural, porque não tenho experiência histórica, social e humana que me permita retratar esse universo ou qualquer outra atmosfera que não seja a que (re)conheço.

Como analisa o mercado editorial brasileiro atual e o acesso do leitor ao livro. Acredita ter havido algum avanço em relação à década passada? 

Como todo mercado, visa ao lucro. E o lucro, na maioria das vezes, está diretamente ligado não necessariamente ao cultural, mas ao financeiro. E nessa sociedade massificada pelos fetiches globalizantes da competitividade, o livro transformou-se num produto. Ele precisa mostrar mais a cara que o coração. Então, não é demais observar que o mercado editorial brasileiro, como em qualquer lugar do mundo, só se interessa por títulos e autores que têm apelo comercial: os  Paulos Coelhos, os  Gabriéis  Chalitas, os Augustos Curys  e os padres Fábios de Melos, enfim, o lixo literário nacional e estrangeiro, os best-sellers de duvidoso gosto e questionável qualidade que aqui chegam com status de novidade. O esoterismo de butique, a autoajuda, são  o que vende, porque é aquele tipo de literatura homologatória do bem-estar, que não faz mal a ninguém, que não dá um soco no estômago, que não faz pensar, que, ao contrário, engana o estômago e promete o falso paraíso, com seu carpe diem e suas ladainhas a la Zibia Gasparetto e Padre Marcelo Rossi. Talvez, se fôssemos um país de leitores – e melhor: de leitores bem  (in)formados – com espírito de discernimento e postura (auto)crítica, essa vassalagem ao mercado estaria com os dias contados. Mas esse fenômeno parece não ser apenas privilégio do Brasil, um dos países com o menor índice de leitura do mundo, pois em todo o universo  a  mediocrização, a banalização e a bestialização cultural, fruto de uma mercantilização indiscriminada e indecente, caminham a passos largos. O avanço, se houve, foi do mercado editorial, não de uma política do livro e da leitura. Ainda estamos na pré-história nesse contexto, porque não há uma visão estratégica de estado, que propugne pelo estimulo à leitura, que crie e mantenha bibliotecas funcionando em todo o país, não depósitos de livros, mas espaços de múltiplos usos, que criem a convivência intelectual capaz de produzir pensamento e ação. E isso não interessa às elites políticas nem econômicas, porque um povo bem informado tem uma arma na mão. O mercado editorial brasileiro, com seu apetite mercantil, pois não temos editores do nível de um José Olympio, de um Enio Silveira, de um Pedro Paulo Sena Madureira (que sabiam o que é um bom livro ou um bom autor), mas executivos com olhos na planilhas solitários em suas babeis envidraças recebendo goela abaixo o que impõem os agentes literários, esse sistema cartorial e mafioso, incensador de mediocridades e fabricante de fraudes literárias, não mede esforços para editar autores sem importância e sem qualidade, porque são produto da mídia, da crítica rendida e vendida, fenômenos de ocasião saídos das fornalhas das oficinas literárias (que considero outra bobagem, porque não acredito em fórmula pronta para ser escritor, em compêndios para escrever e fazer sucesso, antes de haver o escritor, deve haver dentro dele o leitor em potencial, sua verdadeira oficina. Hoje nossos escritores, muitos deles premiados em importantes concursos, com livros publicados pelas grandes editoras, têm um repertório pífio de leituras, sabem tudo de Paul Auster, Philip Roth, Villa-Mattas, Roberto Bolaño, Thomas Pynchon, Amós Oz etc, mas desconhecem, solene e criminosamente, a boa literatura que se faz no Brasil). São papagaios de pirata do mercado literário internacional. Escrevem com olhos em Nova York, Paris ou Londres, incapazes de assimilar a realidade, os conflitos e contrastes da realidade brasileira em suas literaturas.

A cultura ainda é propagada de forma bastante desigual no Brasil, quase sempre circunscrita aos grandes centros urbanos, afastando aqueles que vivem em lugares mais distantes do acesso a bons livros, filmes, peças teatrais, música e arte de boa qualidade. Algo a fazer para corrigir tais distorções?  

Sim, porque é para onde está concentrado o poder econômico e a melhor distribuição de renda que se destinam as políticas culturais. Nos últimos anos, vem-se tentando preservar e difundir as culturas regionais, que são riquíssimas, incomensuráveis, peculiares. No entanto, ao longo dos anos, principalmente com o advento da televisão e dos monopólios das redes, elas foram negligenciadas, de modo a se criar uma esquizofrenia nacional, com o adultério de usos, costumes, falares, etc. Isto foi introjetado pelas novelas e programas realizados e retransmitidos de norte a sul, de leste a oeste, a partir do Rio e São Paulo, o que, em minha opinião, contribuiu, avassaladoramente, para desaculturar o país, criando uma falsa e estúpida homogeneidade, impondo, goela abaixo, modelos de expressão cultural e artística que nada têm a ver com suas vidas e com suas identidades. Reputo essa política como um crime de lesa-cultura, que vem se perpetrando há décadas, sem a menor oposição, e que está contribuindo, infelizmente, para uma espécie de pulverização do pensamento crítico do povo brasileiro, descaracterizando totalmente o potencial estético que cada região tem e que não deveria ser violado dessa forma. Hoje um acreano está falando, vestindo, comportando-se, reagindo, até mesmo emocionalmente, como um carioca ou um paulista, assim como um matogrossense,  um brasiliense, um gaúcho dos pampas ou um indígena de Roraima, que são repetidores do que Faustões, Anas Marias Bragas, Xuxas, BBBs e o escambau vomitam nas telas em sua diarréica emissão de besteirol. Um Paulinho da Viola ou um Dyonelio Machado, hoje, valem menos que Luan Santana, Anitta ou Pabllo Vittar. Há um frisson quando nulidades como essas aparecem e são comemoradas com histriônica recepção. Se Clarice Lispector, Machado de Assis, Guimarães Rosa ou Tolstoi ressuscitassem e fossem lançar um livro em qualquer cidade brasileira, passariam despercebidos, porque o nível de imbecilidade, alienação e subserviência ao que é lixo é tão grande, que eles seriam torpedeados. Isso é destruição do nosso patrimônio mais valioso, pois a indústria cultural do grande eixo hegemônico e monopolista passa com seu rolo compressor sem nenhum constrangimento. Infelizmente, essa realidade nos avilta, amesquinha, humilha e apequena. Parece cada dia mais tangível a constatação de Nelson Rodrigues, para quem “Os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos”.

Foi lançado, recentemente, o romance que escreveu com sua esposa, a escritora Eltânia André. Como foi a experiência de escrever um livro a quatro mãos? 

Trata-se da narrativa Diolindas,  que escrevemos a quatro mãos e que foi um desafio muito estimulante. A escrita colaborativa é instigante, porque nos possibilita o compartilhamento de ideias, visões e estilos bem distintos no desenrolar de uma história ou de uma trama. E é no entrechoque das experiências narrativas, na fusão de linguagens e ritmos, que o texto vai nos roubando, nos catapultando para outras direções, outro corpo, outra consistência. Ao final, não se percebe onde está um autor e onde está o outro, porque na formulação híbrida dos capítulos, que contou com mútuas interferências, opiniões e enxertos, emerge um texto distinto, um terceiro que tomou rumo e identidade próprios.

Conte um pouco sobre sua ligação com a literatura latino-americana e da amizade com vários de seus escritores. 

Dentro do meu amplo espectro de leituras, o acesso à literatura latino-americana aconteceu à medida que eu senti a necessidade de conhecer mais profundamente a produção literária do nosso continente. Tornou-se mesmo uma imposição ética tanto quanto estética.  Na formação cultural do leitor brasileiro sempre percebi certa tendência  a sacralizar as culturas norte-americana e européia, em detrimento de um grande manancial que é a cultura e,  principalmente, a literatura latino-americana. Mesmo em relação à literatura européia, sempre fomos anglocêntricos e francocêntricos, esquecendo de nossas raízes portuguesas, das raízes históricas, literárias e culturais de onde provêm nossa matriz e nossa identidade. Sempre estivemos de costas para a terra-mãe, principalmente na negligência com o amplo espectro da literatura portuguesa. Do México ao Uruguai, temos, entre nós, nossos Faulkners, nossos Prousts, nossos Cervantes, nossos Camões, nossos Dantes, nossos Shakespeares,  nossos Manns, nossos Dostoievskis. Mas durante cinco séculos  negligenciamos solenemente e estivemos, de forma imperdoável, de costas para os nossos vizinhos e de cerviz  abaixada para Atlântico. Então, sempre me perguntei por que não explorar esse ambiente ficcional e poético, que nos legou um Rulfo, um Borges, um Onetti, um García-Márquez, um Roa Bastos, um Ciro Alegría, um Vargas Llosa, um Benedetti, um Mujica Lainez, um Astúrias, uma Gabriela Mistral, uma Silvina Ocampo, um Arguedas, um Quiroga, um Monterrosso, um José Donoso, uma Cortazar, um Nicanor Parra, um Mujica Lainez, um Ricardo Piglia, um Benedetti e tantos outros que falam mais diretamente ao nosso mundo e aos nossos corações, porque mergulham na nossa realidade geográfica e psicológica, com suas idiossincrasias, seus valores, seus dramas e dilemas humanos e políticos, que nos são tão particulares e comuns? Talvez, o que nos tenha afastado e distanciado dessa perspectiva de compreensão e estudo da literatura dos nossos vizinhos, seja o isolacionismo a que nos condenamos por sermos os únicos falantes do português na América. É o momento de redescobrir as Américas Latina e Central. Há um monumento cultural, não apenas na literatura, mas nas diversas linguagens, a ser resgatado e valorizado. Isso me fez interessar-me cada vez mais pelos escritores do continente, principalmente instaurando contatos e intercâmbios com escritores da minha geração, em diversos países, o que tem me proporcionado um prazer e um enriquecimento estético no desvendamento de suas obras e suas vidas.  Um dos projetos que idealizei, ainda quando vivia em Brasília, e que foi interrompido após minha mudança para São Paulo, foi o mapeamento da poesia argentina contemporânea, de modo a oferecer um amplo painel de sua produção poética, que é valiosíssima, numérica e qualitativamente. Nesse sentido, pretendo realizar uma coletânea, incluindo nomes de diversas províncias e faixas etárias e publicá-la em breve. Penso, a respeito dessa valorização da literatura da América Latina, que cabe ao Mercosul alargar a estratégia diplomática, não apenas voltando-se para a unidade econômica, monetária e política do continente, mas para formar um consenso em que estejam presentes a preservação de nossas raízes e as inter-relações de nossos projetos, produtos e agentes culturais. E isso começa por criar obrigatoriedade do estudo do espanhol nas escolas brasileiras e do português ser ensinado aos alunos dos países hispânicos.

Que impressões teve ao integrar comitivas de escritores em congressos internacionais de literatura? 

O contato com outras culturas, outras visões de mundo, outros processos criativos, tem sido fundamental para a minha formação não apenas intelectual, mas especialmente humana, espiritual, íntima. Entre os lugares que visitei, participando ou não de encontros literários, a viagem ao Irã, em 2007, foi a mais fascinante.  Nessas viagens, acabei  por perceber nossa pequenez e miséria, mas também passei a compreender dialeticamente o mundo, porque essas relações e encontros nos fornecem pistas sobre o valor, o poder e a importância de cada cultura, no seu tempo e na sua geografia.  E essa interface e sinergia, essa troca de experiências criativas, afetivas, históricas, sociais e políticas,  nos ajuda a fortalecer o senso crítico e a capacidade de agregar novos valores, tornando-nos mais flexíveis e permeáveis às novidades.

Deixar o Brasil e fixar-se em Portugal, em 2017, se deveu a que razões? Sente-se acolhido na terra de Camões?  

Era um sonho antigo viver fora, então, aproveitei que havia me aposentado em 2016, após 35 anos de trabalho como bancário da Caixa Econômica Federal e 37 de contribuição previdenciária e atravessamos o Atlântico para essa nova experiência existencial, geográfica, cultural e histórica no velho continente, onde tenho também minhas raízes portuguesas (paternas) e italianas (materna). Mas também, e principalmente, para fugir da violência e do espectro de conservadorismo, babaquice, preconceito, instabilidade político-institucional que vive o nosso país, após o golpe criminoso do impeachment contra Dilma Rousseff, perpetrado pelas elites conservadoras e excludentes que dominam o país, golpe tramado pelos neoliberais do PSDB/PMDB, em conluio com o baronato na indústria (com assento na FIESP) e as forças conservadoras do agronegócio. O Brasil perdeu nesses dois anos de governo ilegítimo Temer-Meirelles, o que foi conquistado, alcançado e avançado, a duras penas, nos anos Lula-Dilma, período em que tivemos avanços sociais, econômicos e políticos consideráveis, apesar dos erros cometidos, mas que levaram o país a um nível de credibilidade internacional jamais conseguido noutros tempos. E esses marcos civilizatórios vão sendo avassaladoramente desmontados. O Brasil tornou-se irrespirável com todo esse espectro conservador, de saudosismo da ditadura, de crescimento da praga evangélica, essa erva daninha que interdita qualquer possibilidade de evolução e mais que isso, é composta por verdadeiros estelionatários da fé, com suas igrejas-empresas, seus pastores eletrônicos e sua retórica patrimonialista, de surgimento de correntes nazifacistas, de defesa da violência a todo custo para combater a violência que é produto da miséria e das imensas diferenças sociais que ainda existem na sociedade brasileira, da prevalência de uma cultura de exclusão e perseguição de minorias, de violência contra negros, mulheres, homossexuais, nordestinos, pobres etc. Como viver num país que está descendo na escala da civilização com abrupta velocidade, com suas instituições sendo vergonhosamente achincalhadas, tudo com o beneplácito da classe dominante e dessa classe média satisfeita de sua inutilidade social e coerente com sua consciência escravocrata? Estamos num beco sem-saída, à beira do abismo, num escuro. E o pior pode acontecer, sobretudo quando vemos o crescimento do pensamento militarista incorporado nessa figura nefasta de Jair Bolsonaro, que teve o descaramento, o escárnio e a ousadia de afrontar todo um parlamento oferecendo seu voto ao coronel Brilhante Ustra, esse criminoso agente da ditadura militar. Então, não havia outra saída senão buscar uma outra vida, em território onde a tranquilidade social e a normalidade democrática estão plenamente asseguradas. E Portugal apresentou-se como alternativa mais viável, tanto pela qualidade de vida e pelo baixo custo, como pelo conforto da língua e a proximidade afetiva e histórica que nos une. Viver num país onde tudo funciona, os serviços públicos são de boa qualidade, a violência zero e a certeza de que não seremos colhidos por uma bala perdida, pois nos grandes centros brasileiros, o bandido está armado, a polícia desarmada e a sociedade alarmada.

Pode nos adiantar algo sobre seu novo livro, Eles não moram mais aqui, que acaba de sair em Portugal? 

O livro recebeu o Prêmio Jabuti, em 2016, tendo agora sua edição em Portugal pela editora Gato Bravo. São contos que mapeiam vários espectros da vida dos personagens, protagonistas que vivem seus conflitos e dilemas, o livro traz histórias que falam da vida, da transitoriedade e fugacidade existenciais, da passagem do templo, dos conflitos individuais e coletivos, numa sequência de inquietações próprias do ser, envolvido em suas diatribes e idiossincrasias pessoais, vivendo seus limites, seus fantasmas e obsessões. Enfim, um livro sobre as demandas que habitam o homem desde sempre.

Após três décadas de vida literária intensa, algum balanço a fazer? 

Fica-me a certeza de que não desejo outro caminho, porque a literatura me proporciona   estar à vontade e salvo, no único paraíso concebível e confiável: o mundo dos livros. Borges imaginava o céu como uma grande biblioteca. Essa também é minha concepção e também minha utopia. Nem o futebol, nem a política, nem as religiões, nem a família, nem o Silas Malafaia, o Edir Macedo ou o padre Marcelo Rossi. Não serão os pastores eletrônicos e padres midiáticos, nem as duplas sertanejas, tampouco os festivais de rodeio ou as rodas bregas de pagode que me proporcionarão tanto prazer,  tanta liberdade, independência e autonomia. Deixo aqui duas reflexões, uma do querido amigo e escritor mineiro Duílio Gomes, falecido há poucos anos: “Escrever não é a coisa mais importante do mundo, mas deixar de fazê-lo, quando se tem vocação para tanto, pode ser a pior coisa do mundo.” Outra, é a lição de Saul Bellow: “A literatura é o refúgio da sinceridade no mundo de poses.”  É pelo farol dos livros que me guio, não pela  fé mecânica, frenética e hipócrita dos religiosos. Nem pelos massificantes, mumificantes e bestializantes reality shows da vida. Não aceito verdades únicas, não aceito ditaduras. E Deus é uma ditadura feroz e anacrônica, à medida  que decreta a onipresença, a onisciência e a onipotência de um líder que não aceita questionamento nem oposição. Tenho nojo das ditaduras e dos ditadores, não lhes curvo a cabeça, nem lhes  bato palmas. Por isso, a literatura é que me guarda, é meu sustentáculo, lição, teto, pulmão e evangelho,  pois, como diria Northrop Frye, “A literatura continua sendo o único lugar onde se pode ser livre”.

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista. 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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