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Regresso ao passado: Luxemburgo, Natal de 1979

Um manto alvo cobre generosamente Rodange, a aldeia-fronteira. Na minha rua, da Gendarmerie, corporação militar que desaparecerá dentro de 20 anos, os moradores desbastaram a neve dos passeios criando grandes montes sujos de branco e negro entre as casas e a estrada. O céu é cinzento-laranja, como sempre aqui, o branco do inverno mistura-se com as faúlhas vermelhas da “usina”, como diz o meu pai. Descobrirei mais tarde que se chama Arbed, mas lá em casa só tem um nome, a “l’usina”. As chamas e faúlhas voam pelo céu até às nuvens, acredito eu, e deixam as casas sujas de um pó preto que ainda vai durar décadas. Só daqui a mais de 30 anos as casas voltarão a ser coloridas por aqui.

Avisto a minha escola primária ao longe, no topo da rua, há-de ser um dia a “escola da nova pradaria”, Néiwiss, mas hoje é ainda e apenas “l’école des garçons”, a escola dos rapazes, mesmo se na minha turma também há raparigas. O Luxemburgo tem destas coisas. E continuará a ser assim…

Hoje estou feliz. Estou de férias, já fiz os deveres todos a entregar em janeiro, as minhas primos vão chegar de Paris, e todos os dias são meus dias, posso inventar mil aventuras e imaginação não me falta. Aqueles Montes Cinzentos na minha rua são o meu desafio para hoje, os meus Himalaias gélidos, e eu um intrépido explorador, como o Grizzly Adams, que vejo aos domingos na televisão. Ou o David Crockett, ainda não decidi… De kispo, calças de bombazina, botas, gorro e luvas subo ao tecto do mundo e avisto a Fonderie, o bairro cujo nome ficou associado à fundição do ferro e do aço, mas que agora só é conhecido porque mora lá o meu melhor amigo, o Pascal G.. Faço cálculos complicados com a minha bússola de plástico e antevejo que a jornada vai demorar pelos menos mais algumas semanas. Escorrego numa ravina traiçoeira abaixo e a luta pela sobrevivência começa. Não o sei ainda, mas só conseguirei voltar à civilização à hora do lanche, depois de a minha mãe me chamar da janela do primeiro andar. Chego a casa sujo, molhado, com frio, o nariz empedernido e vermelho, com medo da tareia que adivinho. Mas assim que entro em casa chega-me um agradável perfume a filhoses e a leite quente com noz moscada. Quero lá saber dos tabefes se depois poder provar daquilo.

Quando era criança, a época natalícia em minha casa começava muitas semanas antes da data festiva. A minha mãe cozinhava dias inteiros para fazer filhoses e outros doces. Eram travessas e travessas. Dava para partilhar com os vizinhos, os primos, os patrões e colegas dos meus pais, e cheguei até a levar para a escola, num dia em que tivemos que apresentar as tradições natalícias dos países de onde éramos originários. Os meus colegas de turma luxemburgueses faziam caretas ao pronunciarem a palavra “fi-lô-séch”, mas só à primeira, porque depois de provarem a pronúncia vinha-lhes com mais naturalidade. As filhoses acabavam mais depressa que o “stollen”, o bolo seco de passas que a Carole R., a miúda gira de caracóis por quem eu estava secretamente apaixonado, e que tinha seis anos como eu, tinha trazido.

Mais tarde, descobri que essas nuvens retorcidas, estaladiças e generosamente polvilhadas de açúcar em pó, que no Alentejo da minha mãe se chamam filhoses, têm noutras terras portuguesas o nome de coscorões e podem ter as mais variadas formas e ingredientes.

Eu gostava de ver a minha mãe a cozinhar nessas horas vespertinas de frio lá fora. Durante semanas, a casa enchia-se de aromas e nuvens doces que tornavam o inverno luxemburguês mais suportável.

Na noite da consoada, a casa recebia família e amigos, risos e conversas soltas. Havia lombo assado e batatas no forno, sonhos, coscorões, dons rodrigos e pastéis de batata doce algarvios, e o meu pai servia o seu melhor medronho, trazido secretamente no verão anterior, escondido no fundo falso de uma mala de cartão para escapar aos agentes das alfândegas pré-schengianas.

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