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“Rebeldia”, de Cristina Carvalho

Uma das únicas formas de a famosa silly season não nos transformar em apáticos e dormentes seres -mais que o já costumeiro- encontra-se na leitura de um grupito de livros que nos acompanha durante o Verão. São eles uma das âncoras medicinais contra a pasmaceira em que cai o país, esperando que a famosa rentrée política nos traga algum debate e consistência de ideias. Enfim, mais não é que uma reacção instintiva de resgate a que nos damos quando, finalmente, temos um tempito para carregar baterias mais consistentemente nesse néctar que nos possibilitará suportarmo-nos um pouco mais, seguindo a ideia aliciante de Nietzsche.

Fez obviamente parte do meu plano de leituras desta época a Rebeldia de Cristina Carvalho, apresentado no dia 22 de Junho. Como a autora apresenta no seu website, trata-se de um romance “em que Leninha nos conta a sua história. Uma mulher nascida na província que se rebela desde que tem memória contra tudo aquilo que é imposto: a família, a estreiteza dos espaços e das vidinhas pequeno-burguesas, as pequeninas e grandes hipocrisias que massacram com perfume barato a pocilga em que, afinal, todos chafurdam” (https://cristinacarvalho.org/).

Li o livro de um trago, como quem não consegue parar. E essa leitura rápida não aconteceu apenas porque o livro é bem escrito, elegante, atractivo. Não, o que mais me marcou na leitura foi a forma de trazer para uma dimensão de excepcionalidade a verdadeira normalidade de, nas palavras da Cristina, uma “vidinha”.

Leninha, a personagem que nos deixa acompanhar a sua história desalentada de vida, mais não é que toda uma sociedade. A falta de horizontes, a falta de vida, a falta de anseios e de projectos, a falta de excitação, de desejo e de compensação. Leninha tem tudo para ser materialmente feliz, mas vive numa letargia de infelicidade, de incompletude que lhe massacra o quotidiano, sempre igual, sempre sem sabor, sempre a passar ao lado do que interessa.

Mas também é sempre igual a vontade de rebeldia. Uma vontade que, no fundo, é sempre adiada. A vida de Leninha é uma constante tensão entre a normalidade que não se compreende e a vontade de tomar a vida nas mãos, de a decidir, de fazer na primeira pessoa. Mas não, tal como toda uma geração tão marcada por um regime que buscava uma normatividade mental, com uma moral e um bom-senso muito bem definidos em torno da família, também Leninha está irremediavelmente votada para um ver passar os barcos no Tejo.

É um romance de fluir do tempo, com o que essa dimensão tem de mais dramático: a irreversibilidade. Constroem-se vidas, alicerçam-se famílias, gerem-se os projectos que somos cada um nos seus desejos e frustrações. Se Leninha não tivesse entrado naquela pensão de alterne na Ajuda e lá não tivesse passado uma noite, quantas decisões teriam sido diferentes? Possivelmente, nenhuma. Mas passar uma noite, a última antes de ir ter com o futuro marido, naquele espaço, foi a vontade de beber um cálice que não se chegou a vazar. Tal como foi a fuga de casa que terminou ao final do dia, ou, ou, ou….

Talvez numa identificação ainda mais geracional, a minha sogra devorou avidamente o livro, mesmo antes de mim. Mal cheguei da sessão de apresentação da obra, nessa noite, começou a leitura, que terminou no dia seguinte.

É uma história muito marcante de mulheres em mudança de função social e mental. Já não se é a rapariguinha enquadrada num “ancien regime”, campestre e com os valores da ruralidade. É-se, agora, um ser indefinido entre as memórias e os traumas desse mesmo campo perdido, e não mais desejado, mas também um cosmopolitismo de aldeia, de bairro, de ruralidade sem agricultura.

Leninha é um emaranhado de vozes do nosso tempo. De vozes sem capacidade de tempo e sem tempo, mesmo. De vozes que só se levantarão no fim da história para carpir o tempo perdido, a rebeldia nunca tida, a coragem desencontrada. Vidas que o sentido parece ter sido um hiato entre o nascer e o morrer.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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