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Para que nos servem as religiões?

De uma forma muito mais ecológica — e digo-o porque com menos mortes de árvores, mas também porque mais eficaz para com os problemas das comunidades humanas onde essas questões cada vez se colocam de forma mais premente —, quem está no terreno, junto das comunidades, sabe muito bem que é no equilíbrio, no matiz entre o multi e o inter, que tudo se joga, num tabuleiro onde, mais que saberes teóricos, é com sensibilidades, com confiança e com compromissos que se constrói comunidade.

E o equilíbrio resulta daquilo que, mais uma vez, quem está no terreno muito bem sabe: um grupo precisa de definir identidade para manter amarras e coesão, trazendo o multicultural para o todo, muitas vezes como uma imposição, mas o colectivo mais largo que o grupo necessita que, para que haja diálogo, esse multi, em que cada parte se afirma pela diferença, se encontre no espaço comum, na ágora, na praça pública da cidadania onde se dá o intercultural, que resulta em choque, em confronto, e em mudança e adaptação de cada uma das partes, mas enriquece a todos.

Sem o multicultural não temos identidades e cada indivíduo poderá ser um órfão se a sua raiz for destruída, e o colectivo precisa que cada individualidade dê espaço aos indivíduos para tocarem no semelhante que é diferente, criando a interculturalidade. Pode parecer simples, mas a Europa anda com esta equação, este verdadeiro enigma matemático, há muito tempo sem conseguir chegar a uma solução minimamente satisfatória. A riqueza da diferença encontra-se nesse fio-de-prumo que nos indica um meio-termo imaginário entre a manutenção do específico através da afirmação da diferença e o comunitário que obriga, logicamente, a fazer concessões e abdicar de absolutos.

Foi com alguma apreensão que nos últimos dias fui para um debate na Apelação, Loures, que reunia um grupo de religiosos de várias tradições com implantação na freguesia, em torno da ideia Amar é cuidar. Era um debate centrado no lugar dos idosos na sociedade.

E ia com alguma apreensão porque os mais normais encontros de lideranças religiosas têm duas características fundamentais. Por um lado, são sempre os mesmos actores, os “presidentes”, o topo das hierarquias; por outro, esses debates são quase sempre em torno de ideias muito vagas, direccionadas para conceitos fundamentais como a Paz, mas libertos de qualquer amarra ao mundo das pessoas e dos colectivos que ouvem tão doutos líderes. O meu papel, que também se repete, é o do académico, a pessoa conhecedora e isenta que pode ser um garante de diálogo e respeito — a minha tarefa é sempre muito fácil de cumprir.

Mas no fim-de-semana passado, na Apelação, o desafio era o de nos amarrar ao concreto, a questões que importunavam os ouvintes: os idosos maltratados, os idosos abandonados, vigarizados, ostracizados. A organização da autarquia de Loures tudo tinha articulado para nos conduzir para respostas e não para ideias vagas, começando pelo primeiro momento desse evento: uma peça de teatro apresentada por um punhado de jovens do bairro, um bairro complicado e problemático, o Teatro Ibisco, que nos mostrou, de forma muito directa, a violência sobre os idosos. O mote estava lançado. O debate seria sobre o concreto.

E fez-se multiculturalidade porque cada grupo, cada líder religioso, levou a sua experiencia, a sua forma de lidar com as situações; mas também se fez interculturalidade porque o grande apelo transversal todo foi o do comum, da comunidade, dos gestos e das práticas que salvaguardam os direitos dos idosos no seu geral.

Nos tempos que correm em que a família alargada que herdámos de séculos e séculos de vida em comunidade já quase não existe, foi especialmente significativo ouvir a experiencia da comunidade cigana através da Igreja Cigana Filadélfia. Com tantas diferenças encerradas em muros que erguemos em torno da imagem de “cigano”, ali todos percebemos que, para as comunidades ciganas, os idosos ainda são os anciãos, os que são ouvidos e respeitados, os que são procurados para conselho. Não há abandono de idosos, dando a todos nós uma lição de dignidade que nos obriga a quebrar os referidos muros.

Mas o evento não se esgotava neste debate. No dia seguinte, domingo, enquadrada nas Festas da Sra. da Fonte, católica, voltou-se a fazer o multi e o inter cultural. A procissão deixou de ser normal e juntou-se a uma marcha cívica em que se misturavam cânticos religiosos, com frases emblemáticas de cidadania, empunhadas como se uma manifestação silenciosa fosse. Os principais actores, na sua coragem, foram as crianças.

No fim, ao bom gosto mediterrânico, regressando à frase de Homero no final do Canto I da Ilíada, ouve uma refeição comunitária, onde todos são iguais. A comunidade cigana, a guineense, a cabo-verdiana, entre outras, partilharam a cozinha e serviram mais de 700 refeições marcadas pelas suas gastronomias. Todos comeram a um preço simbólico do prato e dos sabores do vizinho do lado. Um vizinho tantas vezes olhado com desconfiança, mas aqui alguém que alimentou.

Tudo foi possível graças às comunidades religiosas do bairro, à Pastoral dos Ciganos, à autarquia de Loures e à Junta de Freguesia da Apelação, e a tantos como eu que, com as suas especificidades, passaram umas boas horas de forma diferente, a olhar para um rol imenso de “outros”, percebendo melhor o que é a multiculturalidade e a interculturalidade.

Um oikos é isso, a reunião das individualidades numa dimensão de comum. É assim que se faz Comunidade.

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