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Os meus pais

O meu pai aprendeu a lida do mar ainda criança

na Ria Formosa, fez a 4a Classe e estudou para marceneiro,

mas a primeira bicicleta comprou-a em França

para onde foi a salto ainda jovem e solteiro.

A minha mãe atravessou montados de madrugada,

aos oito começou na apanha do arroz

de sol a sol sem temer o capataz algoz,

depois foi criada de servir na casa de uma família abastada.

Mas foi ela, sem instrução qualquer,

que me ensinou a dizer ‘bom dia’ na Língua de Molière. 

Os dois fizeram questão que tanto eu como o meu irmão
soubéssemos, bem antes dos dez,
a falar e a escrever bem Português.


Ela não me falou dos livros que leu
porque nunca tinha lido nenhum,
cresci numa casa onde quem gostava de ler era eu.

Ela dizia-me sempre: “Come o Nestum
todo, sou uma ‘alfabeta’ mas tu vais estudar 

para quando fores grande não andares a limpar

…como eu”.

Sorria quando eu brincava com os legos,

os carrinhos, os brinquedos, 

mas se eu saísse para ir ter com um amigo

sem avisar, esperava-me logo um castigo.

Ela mostrou-me como se cozinhava, costurava,
lavava a loiça, o que até é uma coisa bem prática,
mas só mesmo obrigado eu participava. 

Ele era bom a Matemática,

sabia ler, mas nunca me falou do que leu,

recitava-me apenas a Cartilha e a tabuada,

mas eu não percebia nada.

Quis transmitir-me o nome das ferramentas,
mas eu não me interessava por essas sebentas

nem pelo ofício que ele tinha aprendido
e ele ficava triste e aborrecido.
Para ser totalmente sincero,

houve uma coisa que ele me ensinou:
a História de Portugal e isso ficou.

Os dois explicavam-me muitas vezes

que não havia dinheiro

para todos os brinquedos que eu queria,
eu parava a birra e o berreiro 

e fazia que entendia.


Ela dizia-me para eu parar de ser chato,
para comer a sopa toda do prato
porque havia meninos que queriam e não tinham.
Ele? Ele não dizia nada, dava-me um tabefe e tefe-tefe
eu metia a mistela à boca, mesmo já fria,
continha as lágrimas e planeava uma táctica
para ser presidente do mundo um dia
e plantar espinafres por toda a África.


Ela contou-me como se tinham conhecido em Paris,
como se tinham casado,
mas não como se tinham amado.
Disse-me que uma vez se tinha apaixonado,
mas não me disse se tinha sido por ele.


Não li nada sobre Sócrates, Platão ou Filosofia
antes de chegar à minha escola algarvia,
eles não me falaram de Napoleão, de Rousseau,
nem de Voltaire, Camões ou Waterloo,
excepto dos Abba, que tinham uma canção muito boa.
Não me falaram de Camilo, de Eça ou de Pessoa
mas ele conhecia algumas rimas do Aleixo
e d’ ”Este livro que vos deixo”.

 

Ele contou-me como atravessou a pé os Pirinéus,

e para não pensar no cansaço recitava João de Deus.
Sem saber que não era o mesmo João ela contava-me mais,
que tinha sido um santo nascido na terra dela e que fundou os hospitais.


Eu queria saber mais e insistia

mas ele pouco dizia de Maio de 68, 

lembrava-se apenas dos jovens a bloquear as ruas e afoito

foi trabalhar como em qualquer outro dia.
Não me disseram que era importante votar,
mas eu fui, e eles acharam bem.
E começaram a votar também.


Conheciam muitas histórias da PIDE e da censura,
mas não sabiam como fugir

aos impostos, apenas à ditadura. 

No tempo deles não havia Coca-Cola,

bebiam Pirolitos e jogavam à bola.
Contaram-me que passaram fome

e dos trabalhos sem nome,
ela, sob a chuva nas herdades,
ele, no mar debaixo de tempestades.


Ele não foi à tropa, mas ela foi madrinha de guerra.
Ele dizia ser comunista, “o único regime que não erra”,
mas não sabia quem era Estaline, Lenine nem o tsar.
Ela? Ela não falava de política, só não gostava do Salazar.

Diziam que o De Gaulle era um bom presidente

e o Pompidou um homem doente.

Nunca foram ao Louvre nem ao Prado,

mas viam filmes franceses

dos que nunca tinham passado

em Montemor ou em Faro.

Nesse tempo o meu pai fumava gauleses,

é o quê, perguntava eu,

os cigarros que cheiram mal,

respondia a minha mãe.

E depois proibia-me

de fumar também.

Ele falou-me do mundo antes da televisão,
quando era moço e folgazão,
ao fim de semana ia ao baile
ou ao cinema na Sociedade.

Ele gostava dos filmes de cobóis,

ela preferia o Calvário e a Madalena,
não tinham discos mas conheciam a cantilena
dos ranchos, das modas, do ié-ié e até os Beatles.

Não me disseram como lidar

com as raparigas e o amar,
ele disse-me apenas para ter cuidado com o dinheiro
e ela para não as fazer sofrer como um pantomineiro.


Levei uns açoites, umas estaladas
e também umas valentes bofetadas,
mas sei que fui amado, com certeza, muito.
Ela dizia-o com beijos, abraços e mimos.
Ele? Ele não o mostrava, não sabia como mostrar.

Não havia nada que eu devesse ter feito,
excepto, talvez, a faculdade.

Ela queria que eu vivesse sem dificuldade,

que tivesse um emprego com respeito,
fosse bancário ou professor

ou um qualquer especialista entendido.

Não havia nada que eu não devesse ter sido,

excepto, talvez, jornalista ou escritor.
Ele queria apenas que eu ganhasse

o meu salário e não fosse um otário. 

Não me disseram nada sobre os novos ricos
nem sobre os esquerdistas, os anárquicos,
os socialistas, os nacionalistas. Não eram dessa rês.
Eu não era filho da esquerda nem da direita,
era filho dos meus pais, do meu país e de 1973.


Falávamos pouco sobre religião, mas muito sobre fé
que, disse-me ela, é sempre uma opção,
mas logo a seguir obrigou-me a fazer a Primeira Comunhão.
Não me falaram dos árabes nem de Maomé,
não me falaram dos chineses (ainda não havia chineses!),
mas dos belgas, dos alemães e dos luxemburgueses.
“Nós somos católicos”, incutiram-me,
mas não souberam explicar-me
porquê e o que nos diferenciava dos judeus,
disseram-me apenas que todos

– negros, brancos, índios, ciganos, godos –

são filhos de Deus.


Deram-me um modelo moral,
um sentido da vida, uma certa força vital,

melhor – a força vital certa – ,
uma educação normal,
uma mente aberta.
Os meus pais.

JLC 230118
(2ª versão, inspirado livremente da canção “France Culture”, de Arnaud Fleurent-Didier, do álbum “La reproduction”, 2010)

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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