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O senhor Santos e os rapazes (a saga continua…)

O senhor Santos levantou-se cedo. Deslizou da cama numa quietude intencionalmente silenciosa pois não tinha intenções de interromper o sono a mais ninguém uma vez que o seu foi intercalado de alguns sobressaltos durante a noite. Uma noite longuíssima, quase lhe parecendo que não teria fim. Pela primeira vez em muito tempo, noite, transformou-se numa espécie de desespero entre claridades.

E nem sequer estava preocupado com o torneio. É bem verdade que não estava cem por cento satisfeito com a prestação dos miúdos no jogo contra o Pequeno Magrebe. Não que eles tivessem jogado mal. Afinal de contas ganharam por 1 a 0. Mas o senhor Santos sabia que podiam ter feito muito melhor, muito embora nunca descurasse o valor da equipa do Pequeno Magrebe, equipa que se bateu insistentemente até ao último segundo, uma vez que precisava desesperadamente de uma vitoria.

“Não sei…” dissera à esposa na noite anterior, na caminhada entre a sua casa e a igreja. – “Tenho a sensação de que me falta alguma coisa…não sei…”

E de facto não sabia mesmo. Era apenas um sentimento que não sabia explicar a sua razão nem a sua origem, e isso, era o suficiente para transtornar a passividade das suas noites tranquilas de sono.

Nessa manhã passeou-se pela casa em propósitos de fantasma silencioso e acima de tudo cauteloso.

Depois do encontro com o seu “Eu” que o esperava todas as manhãs do outro lado do espelho, repetindo milimetricamente todos os seus gestos no escanhoamento da barba e outra higiene pessoal, foi à sala, ao quarto dos miúdos, à dispensa, e em todos os aposentos demorou-se por alguns segundos, pousando os olhos irrequietos entre os móveis e o chão, qualquer coisa que desmistificasse aquela sensação que não sabia explicar por palavras, de que lhe faltava alguma coisa.

“Não sei…” palavras que dissera à esposa no caminho para a igreja, “tenho a sensação de que me falta alguma coisa…”

Já na cozinha, pôs a torneira da água a correr, encheu a chaleira e enquanto a água fervia, preparou a caneca com o café e o açúcar.

Uma vez mais os olhos irrequietos radiografaram a cozinha quase milimetricamente, especialmente entre o topo dos armários e o chão. “Não sei…” e de facto não sabia, mas que lhe faltava alguma coisa, lá isso faltava. E nem sequer eram as táticas para o jogo com os rapazes da Pérsia. Essas estavam estudadas e transmitidas aos seus rapazes.

Depois, sentado na varanda a apreciar a serenidade da manhã, segurando a caneca que se fazia visível à sua presença pelo vapor que libertava do seu topo, espalhando um suave e apetecível aroma a café, recostado na cadeira de encosto que fora do seu pai, recebeu a visita do presidente da junta, o senhor Sousa.

Ofereceu um café ao senhor presidente Sousa e ficaram por momentos a apreciar dois pombos a saraquitar no corrimão de madeira todos cheios de nove horas com o rabinho a dar a dar, de mãos atrás das costas a picar a madeira de vez em quando, e todos gogosos.

“Digo-lhe mais, senhor Santos, se os rapazes ganharem este jogo na segunda feira e passarmos à fase seguinte do torneio garanto um equipamento completo, incluindo sapatilhas, para toda a rapaziada…

O senhor Santos ficou comovidíssimo com a oferta do senhor presidente. Garantiu-lhe que sim, que iriam passar à fase seguinte, e foi quando, ao ver o senhor presidente desaparecer na curva da estrada, já depois das despedidas, vá-se lá saber porquê, que repentinamente fez-se luz… Quer dizer…fez-se luz dentro do seu pensamento irrequieto. Descobriu finalmente o que lhe faltava. O seu saudoso pai, com quem tivera uma relação muitíssimo especial, oferecera-lhe em tempos um conjunto de esferográficas Parker de aço inoxidável, e faltava-lhe uma delas, em preto, com o seu nome gravado a branco. Não fazia ideia nenhuma onde parava a esferográfica, que para ele tinha um valor sentimental inestimável.

Quando regressaram à aldeia da Lusitânia, vindos do jogo com o Pequeno Magrebe, que como se sabe, os Lusitanos ganharam por 1 a 0, o senhor Santos dera folga aos miúdos e o treino de preparação para o jogo a disputar seis dias depois, com a junta de freguesia da Pérsia, ficara marcado para o dia seguinte à tardinha.

O que os putos não sabiam, era que, antes de tocarem com os pés na bola, haveriam de lavar a carrinha de caixa aberta do senhor Ilídio. E nem era porque a tivessem sujado no regresso à aldeia. Era apenas uma espécie de terapia física, que com o calor que se fazia sentir nesse dia, era mais do que apetecível por parte da rapaziada. A boa camaradagem que tinham entre si era motivo para transformarem tudo numa grande galhofa uns com os outros.

O senhor João Costa bem se fartou de berrar com eles, para se fazer ouvir, “Ó rapazes…vamos lá ver…” e não viam nada senhor Costa. Os rapazes são insignes jogadores de bola, e sabem bem como se divertir uns com os outros.

Quando apareceram no campo de treino já vinham meio enxutos. Meio enxutos porque o cabelo além de arrepiado, ainda vinha molhado e as t-shirts tinham manchas de humidade aqui e ali, intervaladas com espaços que o sol e o calor que dele emanava, fez secar.

A carrinha de caixa-aberta tinha ficado um primor. O Cédric e o Ricardo Pereira ofereceram-se para lavar o depósito da gasolina por dentro, e o senhor João Costa ficou sem saber, pela maneira séria com que os miúdos falavam, e pela falta de senso que a proposta tinha, se estavam a sério ou a brincar. A carrinha irradiava brilho por tudo quanto era lado. O senhor João Costa via preparação física em tudo, de maneiras que… “Ó rapazes…vamos lá ver…” e não se poupou a esforços, dando instruções aos putos para que ao lavarem a carrinha o fizessem no intuito de tirar proveito da preparação física que a tarefa proporcionava, “Pra baixo, baixo, parte de cima agora, a esponja em círculos, a esponja em círculos, rodar em sentido contrário, vamos, vamos…” e andava ali à volta dos rapazes a saltar de um lado para o outro, entusiasmado com a sua responsabilidade de os manter ativos e preparados fisicamente. Eles, os rapazes, viam divertimento em tudo. Chapinhavam-se em água e espuma, atiravam com a esponja encharcada à cara uns dos outros, e uma vez até, o Fontes ao falhar o arremesso contra o Lopes acertou em cheio na cara do senhor Costa que ficou a cuspir bolinhas de espuma, e de mãos apoiadas nas ancas, a fulminá-los com o olhar, “Ó rapazes…vamos lá ver…”

Quinta à tardinha, sexta, sábado, foram dias de treino intenso, de táticas e palestras, domingo à tarde um treino mais ligeiro, segunda de manhã mais um treino ligeiro e palestra. Ao fim da tarde…pouco antes do jogo, o senhor Santos revelou aos miúdos… “O senhor presidente da junta confidenciou-me que se ganharmos o jogo hoje e passarmos à fase seguinte do torneio, vamos ter equipamentos novos para todos, incluindo sapatilhas…” e carregou forte nas palavras, “incluindo sapatilhas,” só mesmo para salientar o valor da oferta.

Os putos deram um pulo de alegria. O Bernardo e o Gelson perguntaram… “Mesmo novos?” e respondeu-lhes o Gonçalo, “Eh pá, mas vocês são surdos?” Não, não são surdos, mas a esmola quando é grande tem de ser confirmada pelo menos duas vezes. O Manuel, o Mário e o Ruben ficaram a olhar as suas sapatilhas esburacadas e a vê-las novinhas em folha. “Sapatilhas novas…” disse o Bruno Fernandes em voz alta, mas a falar consigo mesmo.

Cristiano soltou um sorriso rasgado de orelha a orelha e disse…

“Vamos lá ganhar essas sapatilhas novas…”

O jogo…

Animados pela promessa dos equipamentos e sapatilhas novas, os rapazes da Lusitânia entraram no jogo cheios de vontade de vencer. Determinados, fortes, criativos e dominadores. Cristiano ameaçou logo aos primeiros minutos, num domínio de bola fantástico, mas acabando por atirar à figura do guarda-redes. Mas o bom começo, o entusiasmo, foi esmorecendo à medida que o jogo progredia. Acabou por ser um dia não para os Lusitanos que apesar do bom domínio de bola, começaram a ficar mais ou menos previsíveis, deixando-se surpreender às vezes pelos contra-ataques rápidos e cheios de furor por parte dos moços da Pérsia. Mesmo assim, quase em cima do intervalo o Quaresma desencantou um momento de pura inspiração de génio, e respondendo a um toque magistral de calcanhar do Adrien fez um golaço de deixar as pessoas de boca aberta.

Na segunda parte do jogo, os Lusitanos sofreram a bom sofrer. Logo no inicio o Cristiano falhou um penalti, para descrédito de muitos, principalmente daqueles que pensam que o melhor jogador de todo o condado não é humano e não tem momentos bons e maus como qualquer outro comum mortal.

A partir daí o jogo transformar-se-ia numa espécie de drama e muito havia que culpar o árbitro que dirigiu o jogo. Uma passagem pelo tasco do senhor Anacleto e “ai meu Deus que não vejo nada.” Eram só dúvidas e incertezas. Em muitas ocasiões parou o jogo por largos minutos correndo às extremidades do campo para perguntar a alguns apoiantes das equipas, “Olhe lá, você viu se foi penalti? O rapaz deu-lhe mesmo uma cotovelada?” e depois, nestas coisas há sempre os que têm certezas de tudo e não viram nada, e os que não têm certezas de nada, mas viram tudo. “Ó velhinho, eu cá para mim aquilo foi mão…” ou seja, havia quem estivesse de acordo com o penalti, mas o tipo que deu a sugestão, a segurar a caneca na mão e a apertar o garrafão entre as pernas para o manter perto de si, foi logo atacado pela maioria que ripostou, “Homessa, então o rapaz vai pôr os braços aonde? Só se lhos cortarem.” E o senhor Enrique, o arbitro, “Ai meu Deus que não vejo nada” a correr para o outro lado do campo e a colher mais umas opiniões, “Vossemecê que me diz…?” E uma velhota sem dentes, a mastigar sabe-se lá o quê e a mandar com os queixos para a testa, a responder, “Ai valha-me Deus ó senhor Anrique, vossemecê ta c’uma bêbeda que nem vê…” E o senhor Enrique a virar-lhe costas a fazer-se de novo, encolhendo os ombros correndo de volta para os rapazes e como um tontinho completamente perdido, a marcar o penalti a favor dos rapazes Persas. Empatou-se o jogo. De um lado e do outro do campo, os rapazes irritavam-se facilmente uns com os outros. O senhor Santos fumegava, e o senhor Queirós, que treinava os rapazes Persas, tirou o casaco e mandou-o de arremesso para longe.

O jogo acabou empatado, os Lusitanos passaram à segunda fase do torneio, e foram uns bravos neste jogo apesar de tudo, pois o que muita gente não entendeu foi que os rapazes da Pérsia foram uns oponentes cheios de vontade de ganhar o jogo e, ter mão neles não foi tarefa fácil, foi tarefa de heróis.

Os equipamentos novos e as sapatilhas estavam garantidas, promessa do senhor Sousa, presidente da junta, e os olhos estavam postos agora no próximo adversário a defrontar em seis dias, Junta de freguesia da Província da Cisplatina.

Apesar de tudo os rapazes tiraram lições deste jogo e para vencerem o próximo adversário, considerado forte, tinham que mostrar que aprenderam essas lições.

No próximo jogo contra a freguesia da Província da Cisplatina já experimentariam os equipamentos novos e as sapatilhas novas. Estavam excitadíssimos com isso.

A saga continua…

(O meu apoio à seleção de Portugal, no mundial da Rússia 2018)

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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