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Memória da Infância – A Serra e a Menina

A menina corre, pequenina entre a urze, o tojo e o mato. Segue em passos invisíveis, mas seguros. Não sente medo. A natureza em redor é sua amiga. O âmago de ambas é feito da mesma pedra e do mesmo vento e da mesma água. Apaixona-se pela beleza das pequenas coisas, mas também pela imensidão daquela Serra.

Voam-lhe os cabelos e serpenteando se misturam na paisagem. E ela é de todos os tons, mas prefere o dourado do sol, que a aquece e ilumina. E o seu vestido amarelo balança ao vento. Conversa com os pássaros e das formigas faz suas companheiras. As borboletas são para si seres especiais, de outro mundo talvez, pintadas com finos pincéis de um artista maravilhoso. Do alto das árvores admira o horizonte, vasto e amplo. Sente o vento. Respira-o todo e com ele se completa. Fecha os olhos. E o mundo é seu, nessa mescla de inocência e liberdade. E aquele horizonte estará com ela, mesmo que ela ainda não o saiba, pela vida toda à distância de um fechar de olhos. Fechar os olhos é regressar a casa, onde a lareira crepita e aquele colo quentinho e saudoso está sempre pronto para a acolher.

Mas lá fora há flores para apanhar, mistérios para desvendar, caminhos para percorrer. Cheira a mel na serra florida. E ela observa aqueles homens e mulheres, já cansados e antigos, mas fortes, únicos, imponentes. São feitos de raízes e terra. São guardiões de outro tempo. A vida dura está-lhes gravada no sulco dos rostos, mas os olhos claros e brilhantes demonstram uma vitalidade inexplicável. Pessoas que conhecem os segredos da terra que anseia a semente e que lêem o tempo pela conjugação dos elementos. “Mete a capa negra do pastoreio menina que a trovoada vem lá”.

O que é a trovoada avô? É o céu que está zangado com os Homens, porque não são amigos uns dos outros. Ah! – dizia ela e não percebia. O que é que os Homens desconheciam para não serem amigos uns dos outros? – pensava enquanto a sopa ainda fumegava no prato. No dia seguinte qualquer preocupação já tinha fugido e ia fazer casinhas das pedras de xisto, aldeias inteiras, toscas mas engraçadas, enquanto a gata distraída ronronava. Em seguida, apanhava grilos para os ouvir fazer cricri, dava-lhes um nome e deixava-os ir saltando. Cri Cri Cri Cri…

Os sons daquele tempo eram esses – o do vento que passeava entre os ramos das árvores, o dos pássaros que em uníssono cantarolavam melodias, o das cigarras e dos grilos, o da água que, brotava da fonte límpida e fresca, precipitando-se, e ainda o ruído dos passos dos animais caminhando juntos e o eco da aldeia que servia tão bem de meio de comunicação. Um uuuuuu largado ao vento pela voz da avó era sinal que a hora da refeição, do banho ou de fechar a porta de casa tinha chegado.

Depois do eco, ficava a voz do vento: “Corre menina corre por entre o milheiral, rebola menina rebola na caruma macia e sonha e sonha, que o tempo é de sonhos e alegria”.

E chegada a hora, dormia em sossego na sua cama de ferro azul pintada, aconchegada pelas estrelas que lhe espreitavam pela janela, fintando o cortinado florido. E, em breve, na Serra adormecida nasceria um novo dia.

Esch-Sur-Alzette, Luxemburgo, 19 de Maio de 2017

(Fotografia gentilmente cedida por Jorge Lucas)

Nota da autora: Caro leitor, aceda aos seguintes endereços e deixe-se apaixonar por esta Serra que é invocada no texto, pela beleza da paisagem, pelo âmago das suas gentes e pelo extraordinário trabalho desenvolvido pela Lousitânea na sua preservação. Visite as Aldeias do Xisto. Visite Góis.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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