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Mabel Velloso: poesia, canto e memória

Mabel Velloso, em quase cinco décadas de produção literária e boa guardiã de seu tempo, com rara sensibilidade vem resgatando o melhor de suas memórias, seja na poesia ou na prosa, revestidas pela força da gente nordestina e sua religiosidade.

Apaixonada pela carreira no magistério, abraçada quando tinha pouco mais de 20 anos, diz que se tivesse de recomeçá-la, o faria sem titubear e com humildade afirma que na sala de aula muito mais aprendeu que ensinou.

Seus versos foram musicados, dentre outros, pela irmã Maria Bethânia. E sua forte ligação com a culinária fez com que reunisse as receitas da mãe, Dona Canô, num livro cujo título, por si só, é poesia pura: O sal é um dom.

Quais suas lembranças mais remotas em relação aos livros e à leitura?

Os livros que me pareciam enormes em cima da mesa da minha professora, Irmã Laura. A Crestomatia, onde fazíamos as leituras diárias, é a lembrança mais forte das minhas primeiras viagens através dos livros. Foi na Crestomatia que comecei a conhecer Bocage, Camões, Bilac, Castro Alves, Gonçalves Dias, Coelho Neto, Machado de Assis. Foi onde li o poema “História de um Cão”, de Luiz Guimarães, que me fez chorar e até hoje me comove. Lá, os primeiros versos que me fizeram ter vontade de escrever.

Que livros e autores foram influência decisiva para se tornar escritora?

Li muitos livros, decorei muitos poemas e todos eles, por certo, deixaram marcas em mim. Estudando para ser professora, li Monteiro Lobato e aí veio o meu sonho de escrever para crianças.

Terá sua veia poética origem em seu avô materno, Anisio Vianna, autor de Asterias, publicado no final do século XIX?

O nome de meu avô já era um verso! Anísio Cezar de Oliveira Vianna. Saber-me neta de um poeta deu-me vontade de fazer poesia, mesmo antes de saber que amor rima com dor.

Como professora, você formou várias gerações de crianças e jovens e vivenciou a dura realidade do exercício do magistério. O que pode dizer àqueles que hoje nele se iniciam?

Se eu voltasse no tempo, seria outra vez professora. Na sala de aula, aprendi mais do que ensinei. Minha formatura foi no ano de 1955. Até hoje, guardo o anel e a minha alegria de saber que ia para as escolas ter contato com as crianças. Sempre pensei que a “Carta de ABC” ia ser meu caminho em cada sala: a amor, b bondade, c carinho, para cada aluno. Segui direitinho.

O que a levou a escrever para crianças? Vê diferenças fundamentais em escrever para crianças e adultos? Acha de boa qualidade a literatura produzida para crianças e jovens entre nós?

Sempre contei histórias na sala de aula. Falava de palácios, príncipes e princesas, de meninas brancas como a neve. Fui então me dando conta de que meus meninos não podiam entrar naqueles palácios, pois todos os meus alunos eram muito pobres e escuros. Pensei em contar histórias onde eles pudessem estar no contexto, pudessem ser o menino que corre empinando arraia, toma banho de rio, descobre cafuas e sobe em árvores que parecem encontrar o céu. Menina que faz mobília de caixas de fósforos, brinca com frascos vazios. Comecei a escrever para que minha turma quisesse ouvir e ler um pouco da própria vida. Escrever para crianças é uma benção. Escrevendo para elas escrevo para a menina que ainda teima em viver em mim. Há diferenças sim em escrever para crianças, pois temos que ter mais cuidado, porque o pequeno ouvinte, o pequeno leitor, é exigente e sabe apreciar um bom livro. A literatura infantil está rica em quantidade. Já de qualidade, nem sempre.

Sua obra traz uma forte marca de religiosidade. Qual papel da religião em sua vida?

Nasci e cresci numa casa de pessoas religiosas. Uma religião doce, saudável, passada com muito amor. Logo cedo perdi o medo que as freiras nos metiam de um Deus que castigava. O Deus da nossa casa era bondoso, perdoava tudo, como o meu pai verdadeiro , como minha mãe. A religião é na minha vida um lastro de esperança, de fé e principalmente de amor ao próximo. O que escrevo é verdadeiro e na minha verdade vive um Deus que nasceu pobre numa manjedoura e foi rico ao distribuir amor. Amor que é a verdade que quero contar.

Em Poesia Mabel, publicado em 2013, temos a reunião de sua obra poética, produzida ao longo de quatro décadas. Qual a sensação de revisitar o que escreveu? Você se reconhece nos primeiros livros ou muito daquela Mabel se perdeu?

Poesia Mabel chega para mim como o primeiro prêmio por tudo que escrevi. A sensação que sinto é que meus poemas voltaram mais bem arrumados, num livro mais bonito que os outros. Na essência, tudo igual, com a mesma Mabel, apesar de estar com quase oitenta anos. Tudo o que foi escrito continua como no momento em que escrevi. Amores e dores mais conscientes, mais fortes talvez. Houve revisão sim, mas não mudei nada. As professoras Érika Bodstein e Valéria Marchi e os editores fizeram a seleção. Seria difícil eu tirar alguns poemas. Não gosto de escolher esse ou aquele, todos foram escritos em momentos muito bons ou muito ruins da minha vida. São todos filhos do sentimento que governa minha cabeça, meu coração.

Como foi reunir as famosas receitas de Dona Canô em O sal é um dom? E como chegou ao título?

As receitas andavam em minha cabeça. Sabia todas de cor. Minha mãe não tinha livro de receitas. Arrumei o livro seguindo o gosto bom dos pratos lá de casa. O título O sal é um dom surgiu quando recebi um telefonema do meu irmão Roberto, perguntando à mãe Canô uma receita. Ela, em Santo Amaro, ele, em São Paulo, precisando lembrar como proceder com os ingredientes. Minha mãe ditou a receita e Roberto perguntou: e o sal? Ela veio com mais uma aula da sua sabedoria: ah! meu filho, o sal é um dom! Nasceu assim o nome do meu livro de receitas.

E Mabel Velloso compositora, com gravações na voz de grandes intérpretes de nossa música popular, traz para você alguma sensação especial?

Os poemas musicados tornaram-se, para meu agrado, um presente. Ouvir meus versos nas vozes de minha irmã Maria Bethânia, minha filha Belô Velloso, é uma benção. Ouvir Paulo Costa, Heloisa Pires, Ana Flávia, Ângela Chaves, Graça Ferreira , Alexandre Leão, Jorge Portugal, Jairo Simões e Stella Maris brincando com meus versos, fazendo com que virem canções, é uma alegria enorme. Ouvindo meus poemas musicados tenho a sensação de que eles voam, sobem e me elevam junto.

Como é fazer parte de uma família de artistas que se tornaram legendas dentro e fora do país?

Minha família é minha árvore. Árvore de raízes que bebem água no Subaé e espalha sombra com o verde de suas folhas. Árvore de flor e fruto que se espalham nas vozes do meu povo, de minha gente, no carinho de minhas filhas, no riso dos meus netos.

Projetos futuros?

O futuro? Está entregue a Deus, à Nossa Senhora da Purificação. Como um poema novo a cada dia, quero repetir: obrigada.

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, professor, jornalista e ator.

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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