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Luciana Iser Setúbal e a escrita dos jogos metafóricos

Nascida em Porto Alegre, Luciana Iser Setúbal ou apenas Setúbal, como assina seus trabalhos, além de escritora, é professora e redatora publicitária. Presente em grande número de antologias, participa, desde 2012, do blog literário Coletivo Claraboia e publicou seu primeiro livro, Onde Começa o que Sempre Acaba, em 2015.

Leitora contumaz, tem na obra de Caio Fernando Abreu sua inspiração maior. E apesar de não acreditar que o gênero faça a escrita, enxerga na energia feminina uma força que a engrandece.

Talvez, definir-se como escritora seja um tanto desafiador. Dizemos isso, porque bem ou mal, muita gente escreve. O questionamento é o que difere uma pessoa que escreve textos casuais na internet, daquela que se utiliza da escrita como ofício. Como analisa essa situação?

Creio que na própria pergunta vem embutida uma possível resposta: casualidade não faz de ninguém um escritor, mas o termo ofício – que pressupõe regularidade – sim. Porque ser escritor não é só escrever quando se tem vontade, ou quando se está “inspirado”. Escrever é o velho “sentar a bunda e trabalhar” e com o hábito se ganha estilo, se consegue fazer escolhas quanto à linguagem, personagens, enredo. Mas a questão não se extingue em escrita regular. Ser escritor é contribuir com pontos de vista diferentes sobre questões universais; é ser hábil em convocar o leitor a compreender a complexidade da existência humana. Se a escrita não vem carregada do objetivo de provocar, instigar, incomodar e de mostrar a multiplicidade de camadas do ser humano, não se tem aí um escritor.

Quando soube que desejava ser escritora?

Minha primeira lembrança de escrever ficção foi com dez anos. Era uma peça de teatro para comemorar os dez anos do suplemento infantil do jornal de Santa Cruz do Sul, a Gazeta Criança. Durante a graduação – nos anos 1990, início dos 2000 – publiquei meus primeiros textos nesse mesmo jornal e a possibilidade me ocorreu muito vagamente. Naquela época, ser escritora tinha um quê de inatingível. Não havia a revolução das pequenas editoras, dos blogs, da auto-publicação. A possibilidade de atuar concretamente na área me ocorreu em 2008, em Florianópolis, quando trabalhava como redatora na Gas Comunicação e tive que criar minicontos para embalagens de uma marca de calçados infantis. Ali vislumbrei a literatura como profissão, como uma alternativa à carreira de redatora em agências e este foi, inclusive, um dos motivos de minha mudança para São Paulo. No entanto, a busca pelo “me tornar” uma escritora e o “me considerar” uma escritora ainda não se resolveu. Digo isso, porque escrever em blog e participar de uma coletânea impressa aqui e outra acolá, não me deixava confortável para me auto-intitular assim. Então, fiz uma promessa a mim mesma: só me dignaria a usar o termo quando lançasse o primeiro livro solo. Mas ainda hoje, com o segundo a caminho, é difícil assumir os significados que a palavra oferece. Tenho usado o subterfúgio de deixar a tarefa aos outros – é sempre um amigo, familiar, conhecido, que me absolve do peso na consciência e me apresenta dessa forma. Freud explicaria, minha terapeuta Luiza também.

Lembra-se do primeiro livro que a impactou fortemente?

Não posso dizer que foi apenas um. Também não são centenas. Houve dois livros que me impactaram fortemente na infância, um pelo subtexto que o enredo entregava, outro em função de contexto. Explico.

O primeiro foi aos nove, dez anos, um romance da biblioteca nada vasta de meu pai. Era Rebecca, de Daphne du Maurier, uma escritora britânica, e a trama girava em torno de uma mulher casada com um viúvo, tendo que lidar com a concorrência da primeira esposa falecida. Sim, porque todos amavam Rebecca e mesmo depois de anos de sua morte, a casa continuava impregnada dos hábitos e da essência da primeira patroa. Eu entendi o livro sem entender. Digo isso, porque o esqueleto da história estava ali, facilmente compreensível, mas havia uma história por trás, o subtexto, cheio de sutilezas, ditos e não-ditos, e que me angustiava, pois eu a intuía, mas não conseguia alcançá-la. Afinal, era uma complexa questão do mundo dos adultos. E como uma criança compreenderia a questão de lidar com o fantasma de um ex-cônjuge, rolando milhares de dúvidas sobre o sentimento do parceiro, em relação ao ex e ao relacionamento atual?

O segundo livro – e acredito que este impactou ainda mais – foi Clarissa, de Érico Veríssimo. Li prestes a completar onze anos. Impactou pelo tema, a decorrência do tempo, a noção de juventude e velhice, de que a vida é o caminho para a finitude. Era a primeira vez que lia algo com tal temática, ainda que de forma sutil. Mas me impactou ainda mais pela sincronicidade, pois encerrei a leitura de Clarissa um dia antes da morte de meu pai. Talvez tenha sido dessas preparações emergenciais que a vida elabora sem nos perguntar, mas o fato é que ao longo dos anos eu imediatamente associava esse romance de Érico Veríssimo à maior das minhas tragédias pessoais. Só fiz as pazes com Clarissa recentemente, há cerca de três anos, quando reli o livro. Aliás, foi o único livro que reli por prazer. Prazer de reelaborar algo que me distanciava de uma obra de reconhecido valor literário.

Dizia Walter Benjamin, “…a linguagem é a essência espiritual das coisas”. Afinal de contas, é ela quem comunica a nossa relação com o mundo. Em seus contos, temos a forte presença do amor e seus desencontros, como a traição, o ciúme e o abandono, numa linguagem muitas vezes árida, o que nos leva a desconfiar do sentimento de amar. Alguma intenção explícita nesse sentido?

Tudo que um escritor escreve dá mostras de sua visão de mundo, isso ocorrendo consciente ou inconscientemente em sua escrita. Não existe neutralidade. Ainda que aquele que escreve possa criar personagens e enredos que contradizem seus valores, suas crenças, o recorte da realidade escolhido fornece pistas sobre as bandeiras que o autor carrega e acredita. Respondi à pergunta?

Alguns escritores necessitam de isolamento total para que possam produzir sua obra. Como é seu processo de escrita?

Eu preciso de isolamento, mas não total. Na verdade preciso de ruído de fundo, igual ao sujeito que não consegue dormir sem o barulhinho monótono do ventilador. No meu caso, o ruído é a música. Então dê-lhe jazz, blues, rock, folk, ritmos africanos, cumbia.

Como analisa a discussão em torno do livro impresso e a cultura digital?

Toda nova tecnologia tenta matar o livro impresso – foi assim com o gramofone, o rádio, a TV, agora com os ebooks –, mas como um bom Freddy Krueger das artes, ele resiste e não morre. Por isso, não acredito em dias seminais para o livro impresso. Textura, cheiro, o ruído discreto das folhas sendo viradas. O livro tem um apelo sensorial que o digital não tem e que para mim (e milhares de leitores) é insubstituível. No entanto, a cultura digital – e aqui enxergo principalmente as redes sociais – pode matar o livro não pelo advento dos ebooks, mas por estar formando uma geração de leitores que, acostumados a textos de 300 toques, não têm fôlego para ler 300 páginas de um romance. E é esse leitor que deixa de ler livros, sejam eles impressos ou digitais.

Ser mulher influencia em sua escrita? Em que sentido o feminino atua em seu trabalho e na recepção de suas obras?

No último ano, me dediquei a ler grandes escritoras, porque os escritores já ocuparam tempo demais em minha vida. O único critério? Mulheres aclamadas pela crítica especializada e/ou detentoras de grandes prêmios literários. Alguma diferença gritante em relação a grandes escritores no que se refere a estilo, linguagem, ritmo, voz dos narradores, formatos inusitados de conduzir a narrativa? Não que eu tenha percebido. São todas narrativas fabulosas, que conquistam pelos personagens, enredos, subtexto. E que poderiam ter sido escritas por homens. Por isso, não acredito que o gênero faça a escrita. Para mim, a escrita literária é um substantivo sobrecomum. Agora, quanto ao feminino – e aqui entendo o feminino como energia complementar à energia masculina, o círculo ying e yang se acampando em minha mente – considero a base da alta literatura, independente do sexo de quem empunha o teclado. Sensibilidade, atenção aos detalhes, capacidade de observação, todas são habilidades que um bom escritor deve ter. E todas são características intuitivamente associadas ao feminino, mas que se manifestam em escritoras e escritores. Já não dizia Gilberto Gil que ser um homem feminino não fere o lado masculino do macho? Pra mim, a energia feminina é que faz da literatura a grandeza que é.

“Comer uma saca de sal juntos, assim era a medida da minha avó para avaliar se o casamento teria ou não futuro…” Este trecho do conto Itinerarius reflete uma característica bastante comum na sua obra: o jogo metafórico. Influência de algum autor?

Seguramente, o grande culpado é Caio Fernando Abreu. Ele é meu mestre maior e dele minha escrita vem impregnada, traduzida em jogos metafóricos, no mal-estar interno de personagens, na vida narrada de dentro para fora, na ação que transborda de sentimentos, percepções, subjetividades.

Quais os maiores desafios para uma escritora em nosso país?

Só existe um grande desafio para uma escritora, seja em nosso país ou qualquer outro: o machismo. Como explicar à escritora americana que enviou seu original para 50 agentes literários ter só recebido negativas – isso quando os editores se dignavam a responder seu email. E quando reenviou o mesmo original para os mesmos agentes, mas trocando o nome por um nome masculino, recebeu respostas de vários, muitos ainda querendo conhecer mais do trabalho do escritor? A história, contada nesta reportagem da Jezebel – http://jezebel.com/homme-de-plume-what-i-learned-sending-my-novel-out-und-1720637627, mostra que o machismo do meio editorial do início do século passado – dissecado brilhantemente por Virgina Woolf, no livro Profissões para Mulheres e Outros Ensaios Feministas, leitura obrigatória para qualquer mulher que deseje escrever, é uma pedra-no-sapato-highlander de escritoras de todos os tempos.

Você foi agraciada pelo ProAC (Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo). Qual a importância de programas como este?    

Programas como esses são fundamentais, pois colocam autores estreantes na vitrine. Afinal, ser contemplada pelo ProAC significa que você passou pelo crivo de um júri especializado, sempre formado por grandes nomes da literatura nacional, o que acaba chancelando, de certa forma, sua produção e atraindo a atenção de editoras. Foi o que aconteceu comigo.

Infelizmente, pouco se lê no Brasil. Qual o  papel  de nossos escritores para mudar tal realidade?

Há pouco, uma conhecida relatou, no Facebook, que dois colegas de trabalho falavam mal dela pelas costas. O motivo? “Quer se exibir que lê livro grosso”, diziam eles. O episódio revela que os conhecidos problemas estruturais – falta de políticas públicas efetivas para a construção e ampliação do público leitor, desatenção crônica com o ensino público, falta de investimento na qualificação dos professores – além de serem causas-master dos baixos índices de leitores, também têm criado um efeito colateral extra: transformar o ato de ler em arrogância. Arrogante é quem lê – e provavelmente quem escreve também, dita o senso comum de muitos brasileiros não-leitores. Então, como os escritores, gente que lê muito e escreve outro muito também, podem ajudar a combater tal situação? Acredito em dois caminhos. Na direção do campo simbólico, não colaborar com o mito da torre de marfim, mostrando-se arredio/arrogante ao contato com os leitores ou menosprezando quem e é o objetivo máximo de sua obra – sim, pois, afinal, se escreve para ser lido, não? No campo prático, assumir uma voz mais ativa ao cobrar do Estado soluções para nossos problemas estruturais.E isso inclui alinhar-se a manifestações que clamam mais investimentos em educação, bem como adotar uma postura Raduam Nassar na entrega do prêmio Camões, denunciando publicamente a questão em entrevistas, encontros literários, recebimento de prêmios e reconhecimentos.

O que dizer do mercado editorial brasileiro? Ele tem sido justo com os novos escritores?

As grandes editoras brasileiras são uma espécie de Garfield: para que caçar o rato se a lasanha está garantida? Por que correr o risco de editar novos talentos, se escritores renomados, best-sellers e livros de auto-ajuda já garantem o pão de cada dia, mais almoço, jantar e sobremesa? Por isso, não sei se é questão de justiça. Está mais para falta de culhão mesmo, o que a longo prazo não se sustenta, vide o caso da fusão Saraiva-Cultura (sim, são livrarias, mas o raciocínio também vale aqui) e o público, cada vez mais efervescente, em feiras de editores independentes, como as Primaveras Literárias, a Feira Plana em São Paulo e a Pão de Forma, no Rio. Todo o contexto sinalizando a busca de novos autores, de visões diferentes em literatura, de rompimento com um status quo editorial em que o único compromisso com a literatura é a garantia de lucro.

Angelo Mendes Corrêa é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP, professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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