Ficha técnica
Título – Limões na madrugada
Autora – Carla M. Soares
Editora – Cultura Editora
Páginas – 224
Opinião
Este é apenas o segundo livro que leio desta autora. Li há dois anos O cavalheiro inglês e gostei bastante da contextualização histórica e da turbulenta e envolvente história de amor entre uma jovem aristocrata portuguesa e um enigmático cavalheiro inglês. Porém, a mais recente obra de Carla Soares é de outra estirpe, é mais densa, mais intimista, dando primazia às personagens em detrimento da ação e revelando uma maturidade que me conquistou desde a página inicial. Se já havia gostado bastante de ler a primeira obra sua que caiu na estante cá de casa, que dizer de Limões na madrugada, que dizer de uma narrativa que nos absorve, que nos impulsiona a passar de capítulo em capítulo, que nos faz apaixonar pela sua imperfeitamente perfeita protagonista?…
Adriana Branco nasceu no Porto, mas viveu quase toda a sua vida na Argentina. Sem que nada o faça prever, recebe um telefonema de um advogado português que a informa do falecimento da sua tia, irmã de seu pai, e que esta lhe deixou uma carta e uns quadros pintados pelo seu irmão, tio de Adriana. Este contacto inesperado com alguém do seu país natal abala-a de uma forma inexplicável e termina sendo a desculpa ideal para regressar às suas origens, para cortar amarras com uma vida aparentemente plena e para, simultaneamente, abrir-lhe portas para um passado familiar de que pouco ou nada sabe e para descobrir-se a si mesma como filha, como sobrinha, como neta, como amiga, como amante e, acima de tudo, como mulher.
Percorrendo as ruas da “minha” Cidade Invicta, perdendo o olhar nas águas do rio Douro, viajando de múltiplas maneiras pelas suas encostas e saltitando do presente para um passado que não é apenas seu, Adriana vai partilhando com o leitor tudo que a compõe como mulher e como personagem redonda, complexa, imperfeita, cheia de incongruências, medos, desvarios, desejos, fragilidades. É uma partilha crua, despejada e que me fez ainda gostar mais dela, talvez porque a aproxima muito do que eu sou, do que todos somos no nosso quotidiano, na nossa vidinha comezinha.
As descobertas resultantes do passar dos dias e de um contacto tanto desejado como indesejado com as histórias e os segredos da sua família paterna vão moldando uma Adriana que sempre se sentiu incompleta. Vão deixando-a aterrorizada, vão obrigando-a a combater demónios de um passado familiar bem como os seus demónios individuais e vão sobretudo fazendo-a crescer, arrumar a sua vida e a vida dos seus em gavetas (que voltará a abrir ou deixará encerradas para sempre) e compreender que ela é fruto, por um lado, de uns laços familiares carregados de dor e de violência e, por outro, das suas próprias ações e decisões.
A capa da obra vem enlaçada com uma fita de papel que compara Carla M. Soares a três autoras distintas – Isabel Allende, Elena Ferrante e Agustina Bessa-Luís. Percebo o porquê dessa comparação, principalmente com as autoras estrangeiras, já que me recuso a ler qualquer obra da Agustina, desde que sofri horrores com leituras suas obrigatórias em tempos de escola. Percebo a ligação com as letras de Allende, visível no lado materno e argentino de Adriana, na fogosidade e liberdade dos seus amores. Percebo a comparação com as obras de Ferrante, com a violência, a dureza e a brutalidade que mancham o lado paterno de Adriana. Porém, preferiria que estas comparações não tivessem um destaque tão visível, porque considero que a voz da autora é muito sua, com talento suficiente para ganhar o seu próprio espaço no nosso panorama literário e quem sabe fora das nossas fronteiras. Estes Limões na madrugada são um exemplo evidente dessa voz e do quanto a mesma tem vindo a amadurecer e a sobressair perante os seus pares.
Termino esta opinião reiterando o quanto apreciei esta leitura, o quanto me apaixonei por Adriana, o quanto a sua personagem é fabulosa e nos agarra, o quanto o seu protagonismo não obscurece personagens menos interventivas na trama, o quanto estas são importantes para o interesse e a vontade que senti em devorar os capítulos curtinhos da obra e em saber quem na verdade foram os Branco e o quanto a autora soube tecer com segurança e engenho uma narrativa muito portuguesa e muito próxima da realidade de todos nós. Por tudo isto, é óbvio que recomendo muitíssima esta leitura e que espero que Carla M. Soares continue a surpreender-nos e a maravilhar-nos com obras densas e emotivas como esta. Ficarei à espera!
Resta-me agradecer – e muito – à editora Cultura por me ter enviado esta obra em troca de uma opinião honesta. Que seja a primeira de muitas e que esta parceria de que tanto me orgulho floresça e continue a dar outros frutos!
NOTA – 9/10
Sinopse
Ansiosa por regressar à Argentina, mas presa a Portugal, distante do homem que ama e da mulher com quem vive, Adriana está perante um dilema universal e intemporal: manter-se comodamente na ignorância ou desvendar o passado da família, como se de um caso policial se tratasse, enfrentando assim aquilo de que andou a fugir toda a vida, por mais doloroso que seja.
Num jogo magistralmente imaginado pela autora, entre a vida atual de Adriana e os ecos do Portugal antigo, machista e violento dos seus pais e avós, esta história, de uma família e dois continentes, é uma viagem entre o presente e o passado, uma ponte sobre o fosso cultural que separa as gerações, um tratado sobre tudo aquilo que a família pode fazer à vida de um só indivíduo.
Entre a sombra e a luz, deixando que por vezes os silêncios falem mais alto do que as palavras, Limões na Madrugada é um romance sobre o amor incomum, o poder da família e a necessidade da coragem.
UMA HISTÓRIA TÃO SUBTIL QUANTO IMPLACÁVEL.