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David Levisky no universo de Maimônides

Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), médico psiquiatra pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), professor da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, editor da Revista Brasileira de Psicanálise, vice-presidente do Instituto São Paulo Contra a Violência, diretor científico do Comitê de Psicanálise da Associação Paulista de Medicina, autor de vários trabalhos científicos sobre infância e juventude publicados no Brasil e no exterior, David Léo Levisky fez sua primeira incursão no campo ficcional com o romance Entre elos perdidos (Imago, 2011), tendo como cenário a Idade Média e figura central o filósofo Maimônides.

Após vários estudos acadêmicos no campo da psiquiatria e da psicologia, como surgiu o romancista David Levisky?

Curiosidade e descoberta que também me surpreenderam. Sempre admirei a capacidade literária de Machado de Assis, Jorge Amado, Phillip Roth, entre tantos outros. Jamais havia pensado ousar nessa área, ainda mais ao considerar minhas dificuldades na infância. Escrever um romance requer domínio da linguagem, capacidade de transmitir situações e sentimentos, configurar personagens, criar enredos. Implica mobilizar a atenção do leitor, levá-lo a se soltar em sua imaginação criativa. Isto é, sonhar a partir dos sonhos do autor. Escrevi mais algumas dezenas de artigos para revistas nacionais e internacionais, colaborei e organizei livros com outros autores, em sua maioria, de psicanálise. Fui editor da Revista Brasileira de Psicanálise. Mas escrever um romance entrelaçado com fenômenos históricos, questões existenciais e de identidade é outra história. Requer alcançar uma liberdade interior interligada à capacidade de transformar fenômenos subjetivos em linguagem escrita e dentro de uma estética. É um estado mental singular que difere enormemente da descrição de casos da clínica psicanalítica, das elaborações teórico-conceituais e interpretativas. A liberdade que se desfruta ao romancear é distinta da escrita acadêmica, delimitada pelos rigores conceituais e objetividade de propósitos. Eu desejava encontrar em mim um espaço lúdico que me permitisse sonhar e vencer temores e críticas ao transformar minhas ideias, sentimentos e imaginações em um jogo estético e de caráter público. É curioso como os personagens adquirem uma identidade e ritmo próprios no processo de elaboração da trama. Escrever um romance histórico permitiu-me pesquisar. Estudei intensamente, ao mesmo tempo em que vivi o sofrimento da libertação interior. Havia sentido algo deste teor ao transformar uma tese que reuniu história e psicanálise em texto romanceado, um pouco mais palatável, Um monge no divã, que narra a trajetória da adolescência de Guibert de Nogent, na Idade Média Central. Texto que serviu de base para a peça teatral De vita sua, na extraordinária adaptação de Marília Toledo e direção de Kleber Montanheiro, interpretada por excelentes e abnegados artistas, encabeçados por Marcelo Galdino e Veridiana Toledo. Após ter estudado a vida de um monge cristão, surgiu o desejo de conhecer a vida de um rabino e pensador judeu da mesma época e de regiões próximas. E Moisés Ben Maimon ( Córdoba, 1135-1204), também conhecido como Maimônides, foi o eleito. Ao conhecer a vida e a obra deste pensador, pude criar uma trama ficcional que resultou no romance histórico Entre elos perdidos. O protagonista deste romance, Eliazar Cação, é um cristão da pós-modernidade, em busca dos elos perdidos de sua identidade. Os sintomas se evidenciam pelo grau de sedução, envolvimentos amorosos e quadro psicossomático, cujos significados ocultos estão preservados no inconsciente, que pouco a pouco emerge do confronto de suas angústias com as ideias daquele pensador. Escrevê-lo foi sofrido, mas o prazer de realizá-lo e difundi-lo tem sido extraordinário.

Em sua formação como romancista, que autores contribuíram de forma decisiva?

Meus livros de cabeceira na juventude foram Ivanhoé, Os três mosqueteiros, Moby Dick e A volta ao mundo em 80 dias. Jorge Amado, Umberto Eco, Italo Calvino, Noah Gordon, Marguerite Yourcenar, Marcos Aguines compõem meu acervo de base. Entretanto, três são as influências significativas para escrever um romance, isto é, escrever sobre a vida. A primeira decorre das leituras dos textos de Freud na compreensão do homem em seu mundo. A maneira como ele analisou a Gradiva, de Jensen, e como descreve os historiais clínicos, são exemplos de domínio da arte da escrita na transmissão do mundo subjetivo. A segunda experiência se deve ao fato de ter sido analisado e conquistado, também com a vida, uma autonomia e independência para transpor barreiras internas e transmitir o que há de destrutivo, de construtivo, de reparador e de criativo em minha pessoa. A terceira vem da relação analítica com meus pacientes, que tem me ensinado sobre a vida, suas dores e realizações.
Eliazar Cação, protagonista de Entre elos perdidos, é um leitor apaixonado do filósofo judeu Maimônides. Que contribuições para a cultura judaica legou o autor de Guia dos perplexos?
Eliazar Cação desconhecia Maimônides. Ele ficou “perplexo” e se apaixonou pela atualidade das ideias propostas por este pensador do século XII. A

Idade Média foi considerada obscurantista, condição hoje decodificada como consequente, pelo menos em parte, pela repressão da igreja que assumia o controle do conhecimento e da difusão das ideias. Maimônides contribuiu com conhecimentos médico-filosóficos, com base nos textos de Aristóteles e do pensador muçulmano Averroès. Ele correlacionou a integração entre corpo e alma, bases da medicina psicossomática. Introduziu o conceito de caminho do meio, a ser encontrado pelo indivíduo, através de suas experiências positivas e negativas. A experiência vivida, como elemento fundamental para o encontro de recursos internos na maneira de lidar com o bem e o mal que habitam o ser humano. Pensamento que se contrapôs à filosofia platônica e agostiniana de exclusão do mal para se alcançar o bem. Contribuiu com textos pedagógicos como o livro Mishné Torá, dividido em 14 livros, sendo que o primeiro foi chamado de Livro da sabedoria. Sintetizou conceitos extraídos da Torá e do Talmud em preceitos, 248 afirmativos e 364 negativos (as proibições), orientando o comportamento da vida judaica. Trouxe também contribuições metafísicas sobre a criação do mundo e a capacidade do homem, que apesar de ser um animal, adquiriu a capacidade de discriminação e, portanto, a capacidade de pensar e, assim, fazer uso do discernimento e do livre-arbítrio na escolha do seu caminho.

Em seu livro anterior, Um monge no divã, suas atenções fixaram-se em Guibert de Nogent, um monge cristão que viveu na Idade Média. E novamente é a Idade Média o período que interessa ao protagonista de Entre elos perdidos. A que se deve tal fato?

A Idade Média é o marco inicial do pensamento ocidental contemporâneo. Período de conquistas, lutas, descobertas tecnológicas e científicas, expansão das artes e do comércio. Cidades se organizaram, universidades foram criadas. Período da história da civilização riquíssimo, mas muitas vezes encoberto pela mentalidade repressora e dominante da igreja. A Europa na Idade Média congregou a presença de cristãos, mouros e judeus. Passou por períodos de fome e de epidemias, de guerras e de invenções. Foi um período fascinante, de grandes transformações de mentalidade, com a emergência dos primórdios da subjetivação em direção à expansão da individualidade.

A paixão entre o protagonista de Entre elos perdidos e uma muçulmana parece acenar com a necessidade de jogarmos por terra os preconceitos que têm impedido o diálogo fraterno entre judeus e muçulmanos. Como enxerga o antagonismo que tem persistido historicamente em nome de valores pseudo-religiosos?

Maimônides era um pacifista ardoroso que buscava a coexistência entre irmãos sefaraditas e ashquenazis, mas também entre judeus, muçulmanos e cristãos. Ele dizia algo como “viva e deixe-me viver”, no sentido de tolerar as diferenças e desfrutar dos pontos possíveis de convergência. Qualquer postura fundamentalista, ortodoxa, caminha em sentido contrário à possibilidade de coexistência. As rivalidades fraternas são frutos de sentimentos de competição, ciúmes, inveja, preferência de filiação. São afetos primitivos que dificultam as relações humanas, por contribuírem na geração de guerras fratricidas evidenciadas tanto no Velho como no Novo Testamento. A atualidade está aí e não nos deixa mentir. A psicanálise dá sua contribuição ao evidenciar esses fenômenos na esperança de que uma consciência maior possa estimular transformações criativas na construção de novos caminhos. Creio ser uma visão idealizada imaginar a possibilidade de um mundo homogêneo e universal. Os sistemas de funcionamento, os mitos, crenças, utopias, imaginação tendem a se cristalizar na mente dos indivíduos e dos povos. Entretanto, esses fenômenos não impedem que se construam espaços comuns de coexistência, maiores e menores, e que dependem de um equilíbrio dinâmico e instável, a partir de um grande investimento amoroso das partes envolvidas em busca de integração e de articulação. Mas, para isso, é necessário muito discernimento, lucidez e vontade política para se alcançar um nível satisfatório de coexistência dentro do princípio “viva e deixe-me viver”.

A busca de Eliazar por suas raízes permite-nos afirmar que o homem só começa a alcançar maior compreensão de si mesmo se souber de sua história e do histórico de seus ancestrais. Como isso é possível num mundo permeado pelo sufocamento constante da memória?

Eliazar Cação é um homem da contemporaneidade e vive as angústias do seu tempo. Desloca-se com facilidade pelo mundo, tem acesso a múltiplas informações e culturas. Mas isso não basta para tranquilizá-lo, pois há algo desconhecido em si, que ele não alcança e que o perturba. Percebe apenas a existência de um vazio interior e seus múltiplos sintomas somáticos. A via encontrada por ele para tentar esclarecer as origens do seu sofrimento é confrontar seus questionamentos amorosos e existenciais com os conhecimentos e a ética propostos por Maimônides. Nesse processo associativo e introspectivo, meditativo, ele busca encontrar os elos perdidos de sua história de vida e de seus antepassados. Outros, entretanto, buscam amparo nos amigos, nas terapias, na psicanálise, nas artes, na fé. Em cada época e cultura, a criatividade humana encontra meios para lidar e tentar atenuar os sofrimentos e males do corpo e da alma. O resgate do reprimido, armazenado em alguma memória, pode contribuir para a libertação interior do sujeito. O encarceramento no passado ou no futuro pode ser o naufrágio do sofredor.

A relação entre Eliazar e sua esposa entremostra ao leitor algo comum entre muitos casais, ou seja, as relações pautadas pelo convencionalismo que atrofiam os verdadeiros sentimentos. Algo a dizer sobre elas?

Sem dúvida. A arte da preservação das relações conjugais depende da continência afetiva, pois muitos casais atacam o vínculo amoroso a qualquer discórdia ou frustração. A preservação do amor conjugal depende do que um pode oferecer ao outro, no espaço comum e intermediário, favorecido pelos vínculos afetivos. Esse espaço é dinâmico, ora é mais amplo, ora se estreita de modo a preservar maior ou menor individualidade de cada um dos parceiros, na dependência do momento histórico do casal e da família. Se a individualidade for muito intensa, ela rompe o espaço comum criado pela relação, mas se houver excesso de dependência, pode sufocar a relação. Como fazer para preservar esse espaço comum dentro de um equilíbrio instável, que requer cuidados constantes? A acomodação leva à mesmice, que significa a morte da relação, leva ao convencionalismo das aparências. Acredito ser muito importante a descoberta do novo dentro das relações, de modo que elas possam se atualizar, se descobrir sexual, afetiva e intelectualmente. É como cultivar qualquer coisa que se admira. É preciso investir para ser investido. Requer paciência, tolerância, perseverança e capacidade para conviver com as próprias falhas e limitações para poder aceitar as do outro. Não há investimento totalmente seguro. Conviver com as incertezas faz parte das boas relações.

A maciça presença dos judeus na Península Ibérica e a perseguição que sofreram durante a Idade Média, fez com que surgissem os cristãos novos, embora muitos deles continuassem a seguir o judaísmo no seio familiar. No entanto, a tradição cristã acabaria por se fazer imposta e as referências judaicas dessas famílias se perdessem ao longo dos séculos. O que dizer das culturas e tradições esmagadas ao longo da história da humanidade, em nome de valores religiosos ou econômicos?

A questão é profunda e complexa. Ela retrata um interlocutor arguto em busca da verdade ou de hipóteses capazes de ajudar a melhor compreender as atitudes dos homens. Somos capazes de encontrar justificativas para tudo e negar consciente e inconscientemente aspectos que nos desagradam. Assim também é com as massas. Há aqueles que querem negar a existência do holocausto, quando foram mortas 60 milhões de pessoas durante a Segunda Guerra Mundial. Em nome do amor a Deus, famílias e povos foram destruídos com as guerras santas de diferentes crenças, enquanto outros se flagelaram na perspectiva de alcançar a graça divina para ter um lugar no paraíso celestial. A natureza humana é agressiva e violenta, apesar de dócil, criativa e surpreendente. Somos tomados por ambivalências e temos capacidade para discernir e decidir no uso do livre-arbítrio. Viver é administrar conflitos. Nos organizamos em sociedade e, ao mesmo tempo, queremos preservar a individualidade, mas é precisamos estar atentos, pois o individualismo, a vaidade e a arrogância podem tomar conta de nós, nos tornando vítimas delas. Evoluímos e adquirimos capacidade simbólica. Concomitantemente, enfrentamos as interdições edípicas e vivemos conflitos fraternos, canais que permitem ao homem dar vazão às pressões amorosas e tanáticas, internas e externas, que nos assolam. Surgem as éticas, as regras, as normas, os ritos, as crenças, os mitos, as utopias e imaginários que constituem as culturas na ordenação da vida. Os seres migram, invadem e são invadidos. Há a miscigenação espontânea ou forçada, imposta pelo subjugo da guerra, da religião, do poder econômico e, hoje, do poder midiático. O tradicional é ameaçado pelo novo, imposto ou criado, que gera a busca de novos estados de equilíbrios. Precisamos do passado para construir uma identidade. Porém, a vida se caracteriza pelo movimento, fenômeno que introduz o novo e que estimula as capacidades adaptativas, de mutação, de transformação, de criação, cujas mudanças podem ser rápidas, lentas ou lentíssimas, que até trazem a ilusão de serem imutáveis, quando observadas pelo prisma histórico. Mudanças provocadas ou espontâneas, controláveis ou imprevisíveis, oriundas do homem (as tecnologias, as guerras) ou frutos de forças da natureza (tsunamis, erupções vulcânicas, etc) que trazem angústias e estimulam a busca de novas éticas e valores. Há os ávidos pelo poder que nada medem para alcançá-lo. As transformações sofrem distintas velocidades e são um fato. Condição que nos leva a preservar nossas tradições, que servem como pontos de amor, de identidade e de referência. Mas, tudo muda, o mundo muda e não há uma única verdade. Porém, como disse Keynes, o preço da preservação da liberdade está na eterna vigilância.

Podemos afirmar que, na verdade, as buscas de Eliazar são um profundo mergulho em seu inconsciente e que é só através deste mergulho que nos tornamos mais donos de nós mesmos?

Acredito que sim. A meditação, a introspecção e outros métodos podem contribuir para que o indivíduo entre em contato com ele mesmo. Os sonhos são uma forma de manifestação do inconsciente, mas requer interpretá-los. Alcançar seus conteúdos é muito rico. Mas, nem sempre conseguimos fazê-lo sozinhos. Somos capazes de criar armadilhas e engodos para nós mesmos ou, ao contrário, não identificarmos potenciais que espontaneamente não percebemos. Em consequência, não conseguimos dar vazão aos conteúdos reprimidos ou nunca experimentados. Há uma tendência, devido à lei do mínimo esforço, a nos cristalizarmos em certos modos de funcionamento e de não percebermos que uma discreta mudança pode nos oferecer uma qualidade melhor de vida. Haja vista como pessoas extremamente exigentes sofrem por não aceitarem o razoável, sem se darem conta de que o ideal e o perfeito são impossíveis. Ampliar essas percepções sobre si mesmo ajuda a viver. A psicanálise, de todas as experiências pelas quais passei, foi o processo mais útil e interessante diante do meu jeito de ser, apesar de penoso em certos momentos.

Outros projetos no campo da ficção? Em que medida a obra de ficção contribui para um melhor auto-conhecimento?

Adorei a experiência de escrever ficção. Como disse anteriormente, foi uma libertação da alma e um sentimento de reparação interior. Aspectos do meu eu, enclausurados, puderam emergir na revelação do intrínseco do meu ser, presente nas tramas e nas características dos diferentes personagens. Agora, pretendo desenvolver algo que fale da capacidade feminina para lidar com as dificuldades da vida. Algo que está presente no homem, mas que suspeito esteja melhor desenvolvido no sexo feminino, através de sua capacidade de maternagem e de resiliência. Sem dúvida, após ter escrito Entre elos perdidos, sinto-me uma pessoa mais completa e mais amiga de mim e dos outros.

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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