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Crónicas da vida real: envelhecer em solidão

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A bengala de madeira castanha envernizada, afinal não é porque é moda, mas porque ajuda o senhor Mário a apoiar os seus 82 anos de idade numas pernas que já viram melhores dias.

A estação dos comboios está deserta. Não completamente. Num dos bancos espalhados ao longo do apeadeiro, o senhor Mário espera o comboio ansiosamente.

A estação fica no sopé da montanha íngreme onde os pinheiros e toda a vegetação se estendem num verde carregado, cheio de vida, até onde a vista pode alcançar.

Pendurado na parede, por cima da porta que dá acesso ao interior da estação, para quem sai do comboio, e quase a rasar o beiral do telhado, está um relógio de face branca arredondada envolta numa espécie de caixilho de madeira de um castanho escuro, números em letra romana, ponteiros grandes e pontiagudos em forma de seta.

O senhor Mário que até aí esteve de mãos entrelaçadas, apoiadas no topo da curvatura da sua bengala e onde a maior parte do tempo deixou descansar o queixo, levantou a cabeça assim que pelo canto do olho viu o ponteiro grande do relógio completar a sua escalada até ao topo, com o ponteiro pequeno apoiado sobre o seis romano, indicando as seis da manhã.

De olhos ávidos e curiosos esperou com ansiedade que o comboio aparecesse a qualquer momento da curva do horizonte por onde a linha desaparecia, uma vez que ouvia lá ao longe o comboio a apitar.

Finalmente a curva, ladeada à esquerda pela montanha e à direita por um descampado de altos e baixos, paria o comboio. Primeiro a face metálica e robusta e logo de seguida o resto do corpo que ganhava volume à medida que avançava para a estação. Assim que a curva acabou de o parir acostou junto à plataforma.

O senhor Mário levantou-se de coração a palpitar no peito, mas sem sair junto ao banco, sem dar um único passo, apenas de mãos a tremelicar, uma repentina fraqueza nas pernas, um formigueiro na barriga, um calor a fervilhar dentro de si e a manifestar-se nas faces, que com toda a certeza estariam rubras.

Não se percebe aqui a presença da bengala uma vez que o senhor Mário é um jovem cheio de força e de vida. Só pode ser uma questão de moda. Mas percebem-se bem todos os sintomas descritos, uma vez que estão ligados ao sentimento do amor, da paixão.

Depois, as portas do comboio abrem e os passageiros começam a sair movendo-se em todas as direções, quase mecanicamente, como que alheios uns aos outros, como quem vai com uma missão já pré-estabelecida e não perde tempo com nada nem ninguém até cumprir o objetivo que lhe foi designado.

Talvez por isso, entre a pequena multidão que se afastava do comboio, ziguezagueando entre si até sair pela porta da plataforma e de acesso ao interior da estação, o senhor Mário destacasse entre todos, o rosto mais bonito e afogueado, que jamais viu. De facto, esperava por ela. A sua amada. Lá ao longe ela acenou-lhe com a mão e um sorriso mais brilhante do que as estrelas em noite escura, à medida que se ia aproximando dele. Finalmente o senhor Mário afastou-se do banco onde estivera sentado à espera da donzela e começou a caminhar na sua direção, aumentando, além dos sintomas já descritos, um desejo ardente de a abraçar, de a beijar, de a ter junto a si. “Que saudades meu amor.” E estas palavras já as vinha a repetir na sua mente, muito antes de lhe ter posto a vista em cima.

E depois, já tão perto dela, estendeu-lhe os braços para os dela que já vinham estendidos e quando finalmente a estava a alcançar ela simplesmente desapareceu, todas as pessoas desapareceram também, o comboio desapareceu, e assim, sem o senhor Mário perceber o porquê, a estação ficou tão deserta e solitária quanto antes.

Uma espécie de desespero cresceu dentro de si, e o que mais o deixava confuso é que apesar de tudo ter sumido mesmo ali à frente dos seus olhos, incluindo o comboio, é que ainda o ouvia apitar, e talvez por isso procurasse novamente na curva que havia parido o comboio, por uma desesperada resposta.

E de repente o senhor Mário abriu os olhos, e por momentos ficou ali sentado na sua cadeira de encosto, a acordar de um sono que lentamente o trazia à realidade. Por trás de si a chaleira libertava um fio grosso de vapor ao mesmo tempo que deixava escapar uma espécie de apito que tinha entrado no sonho do senhor Mário, muito antes de ele ter acordado, criando no seu subconsciente a imagem do comboio e o resto que o sonho a seu belo gosto, em conivência com o seu subconsciente, ajudou a criar. Pousada a seu lado, a bengala de madeira castanha envernizada, à sua frente e a um canto da mesa a fotografia da sua falecida esposa que nem as rugas espalhadas pela cara foram capazes de encobrir a sua beleza, o seu sorriso caloroso, e o seu olhar terno e doce. No seu colo, o Preguiçoso. O Preguiçoso era o seu gato, que passava a vida a dormir, levantando-se só para comer ou para ir à rua pôr em dia as suas necessidades fisiológicas. A bengala de madeira castanha envernizada, afinal não é porque é moda, mas porque ajuda o senhor Mário a apoiar os seus 82 anos de idade numas pernas que já viram melhores dias.

Muito a custo, apoiado na bengala de madeira castanha envernizada, o senhor Mário vagarosamente dirige-se ao fogão e desliga a boca que faz ferver a chaleira. Regressa à sua cadeira de encosto e antes de se sentar, uma vez mais apoiado pela sua bengala, pega na fotografia da sua esposa e de lágrimas a escorrer cara abaixo, encosta-a à sua boca, beija-a de olhos fechados e num lamento que ninguém mais ouve, a não ser o Preguiçoso, que agora por estar a comer, também não se rala, o senhor Mário volta a repetir…”Que saudades meu amor..”

O senhor Mário ficou viúvo vai para dez anos e a partir desse fatídico dia perdeu toda a alegria e todo o sentido de viver. Começou a envelhecer precisamente a partir desse dia. Perdeu não só a sua amada de uma vida, mas também a sua companheira, a sua amiga, a sua confidente, as suas conversas, os risos satisfeitos e até os argumentos que nunca se estendiam por muito tempo, resolvendo-se com muita compreensão, muito respeito e acima de tudo tolerância.

O senhor Mário recebe a visita do filho uma vez por semana. Sábados ao início da tarde, e um telefonema quase diariamente ao cair da noite. Numa e noutra situação, sempre cheio de pressa. Nos contactos telefónicos arrasta a conversa num cardápio de recomendações. “O paizinho deve tomar a sua medicação sempre a tempo e horas. Não vá para a cama tarde. Não se esqueça de desligar a televisão antes de dormir…” e vai por aí fora, a fazer perguntas sem tempo nem paciência para esperar por resposta. Aos sábados mal entra na porta e já vai avisando o quanto está cheio de pressa. “O paizinho está bem? Hoje não me posso demorar, tenho tanto que fazer…” Mas mesmo assim demora-se o tempo de sempre. A vontade de despachar a visita entra numa luta de consciência com o dever e quase obrigação de ficar. No tempo da visita, dá uma volta pela casa, ajeita aqui e ali, faz mais recomendações e ralha. Chegou a sua vez de ralhar…

Não tem muito tempo para se sentar e ter uma conversa com o pai. No entanto, quase se perde em recomendações e cuidados. “O paizinho não pode adormecer e deixar o fogão ligado. Dá-se uma tragédia e ainda dizem que o paizinho foi botado ao abandono.

O senhor Mário percebeu pela resposta que ser sincero, expor os sentimentos tal e qual eles se nos eflorescem, nem sempre é a decisão ou atitude mais sábia. O senhor Mário sabe disso, sempre soube. Mas envelhecer em solidão, e a constante pressa do filho, quase nunca são uma boa combinação. “Ora, ora, ora, o paizinho tem cada uma. Então vai-me confundir a chaleira a ferver com o apitar do comboio…ora, ora, ora.

Vontade de lhe responder… ”São tão pequenos e insignificantes os motivos que despertam um solitário para o ilimitado poder da imaginação.”

E era nesse poder de imaginação que o senhor Mário matava saudades de outros tempos, que visitava de maneira, umas vezes fugidia, outras vezes muito mais demorada, consoante o desespero e dimensão da solidão, a sua amada, que conversava com ela, que lhe sentia o perfume de outros tempos, o sorriso e a alegria, mas também as tristezas, que fizeram parte de um passado que agora lhe dói tanto em saudade como em solidão. Nas visitas do filho, são várias as tentativas em que tenta iniciar uma conversa que não seja limitada por um esguelhar dos olhos e um suspiro enfadonho que o filho logo tenta disfarçar ao dizer, “Hoje estou cheio de pressa paizinho. Tenho tanto que fazer…sabe como é…é a vida…

E o senhor Mário, porque não quer atrapalhar a vida do filho… (…)

(Continua)

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