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Vera Lamy: o processo criativo que desestabiliza

Dramaturga, atriz e diretora, Vera Lamy é formada pela Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo (USP) e desde 2004 integra a Cia do Feijão, grupo teatral que tem por objetivo central a abordagem da realidade brasileira e de suas questões sociais e culturais.

Em 2015, estreou como dramaturga, no monólogo Manuela, evocando Mário de Andrade, figura de sua máxima admiração, de cuja obra tem-se ocupado nos últimos anos.

O que você recorda com mais alegria dos anos de formação na Escola de Arte Dramática, em São Paulo? Naquele período, alguma dúvida quanto a seguir a carreira de atriz?

Dos companheiros, dos artistas que conheci na Escola de Arte Dramática e que hoje fazem parte da cena teatral contemporânea. Ainda somos muito ligados nas escolhas dos nossos trabalhos, em dividir o pensamento artístico do nosso tempo. E também sou muito feliz pelo encontro, na minha formação, com alguns artistas/professores. Exemplo é a Cristiane Paoli Quito, no processo do espetáculo 33. Nessa época, 1995, nenhuma dúvida sobre o rumo que queria dar às minhas aspirações e encarar a tão sonhada vaga na EAD. Seria uma maneira de fixar-me novamente em São Paulo. Achava a metrópole (e ainda acho) o melhor lugar do mundo para os meus planos. Nasci aqui, mas meu pai, promotor de justiça, deslocou-se muitas vezes pelo interior de São Paulo, levando junto a família. Morei em Tatuí e Araraquara e quando meu pai foi promovido para a terceira instância, voltamos a São Paulo, mas ele e minha mãe se separaram. Mudamos, meus irmãos, eu e minha mãe, para sua cidade natal dela, Pouso Alegre, em Minas Gerais. Estava novamente deslocada da capital dos meus sonhos e quando soube da existência da EAD, percebi a possibilidade de retorno. E agora dependia só de mim.Foi com o coração cheio de vontade que cheguei à EAD. Tinha uma certeza imensa de que era aquilo que eu queria.

Como é o seu processo de construção dos personagens e que elementos um personagem necessita ter para chamar sua atenção?

Já faz algum tempo que o teatro que realizo cria sua própria dramaturgia, oriunda de um processo de investigação muito calcado na literatura e nas teorias literárias brasileiras. Dificilmente parto da uma dramaturgia existente, com personagens definidos. A construção de um personagem acontece concomitante à construção do espetáculo. Creio que antes de existir a forma, é necessário o entendimento da dimensão simbólica de um personagem. O teatro está sempre comprometido com sua época. Assim, um personagem busca dentro de seu tempo a melhor e mais concreta maneira de significar. A composição não nasce da pura intuição, existem pistas na prática (experimentação e técnica) e na teoria (estudo e entendimento). Nos meus processos, sempre organizo as experimentações e estudos em espécies de roteiros. São como peças de um quebra-cabeça que buscam seus encaixes pela lógica do discurso e, consequentemente, pela ação dramática que ele provoca. Essa prática tem origem muito mais num teatro lírico-narrativo que no drama. Portanto, o personagem desse teatro nasce do encontro do impulso criativo com o pensamento contido no discurso. A partir daí, começa um trabalho de insistência, de entender e repetir o melhor gesto, a encontrar a melhor maneira de dizer as palavras e construir as ideias, até que a composição esclareça quem é, onde está e o que quer dizer a personagem em questão.

O verdadeiro teatro deve refletir o drama da existência humana com todas as suas nuances?

Sim e não só ele! A arte tem essa função. São os processos de entendimento do sujeito histórico ou da falta dele.

A Cia do Feijão, fundada em 1998, desenvolve sua forma estética a partir da pesquisa e da criação, ambas fundamentadas na realidade brasileira. Como se deu sua entrada no grupo?

Entrei na companhia convidada pelo Zernesto Pessoa. Trabalhamos juntos no espetáculo de formatura da EAD. Fui assistir Mire Veja e conheci o Pedro Pires. Sou filha e neta de mineiros e, quieta no meu canto, observava o cuidado do Pedro e do Zernesto com aquele espetáculo. Era notável a presença desse cuidado, de como com o essencial tornar absolutamente potente a narrativa. Era o ano 2004 e a Cia do Feijão estava iniciando o processo de seu novo espetáculo, um estudo sobre as danças dramáticas brasileiras. Foi um encontro feliz, porque entendi, na Cia do Feijão, a responsabilide do ator como criador da forma e do pensamento de seu tempo. Foi através dela que me comprometi de vez com as questões brasileiras.

O ator italianoTommaso Salvini dizia que “o ator vive, chora, ri em cena, mas enquanto chora e ri, ele observa suas próprias lágrimas e alegria. Essa dupla existência, esse equilíbrio entre a vida e a atuação, é que faz a arte.” E isso mesmo?

Sim, isso é verdadeiro. A capacidade de observar- se atuando e colocar- se inteiro nesse propósito é o que procura todos os dias o artista verdadeiro. Mas não sei se a arte cria equilíbrio entre a vida e a atuação, pois, como diz Mário de Andrade “a arte é filha da dor, é filha sempre de um impedimento vital!”. Muitas vezes, tenho a sensação de que estar imbuída num processo criativo é mais concreto que o próprio cotidiano ou que a inspiração, que até achar seu eixo, desestabiliza tudo ao redor.

Em Manuela, espetáculo encenado por você em 2015, temos uma personagem feminina revelando a trajetória de Mário de Andrade. Como surgiu a ideia de produzir do espetáculo?

Manuela é minha maior felicidade dentro da trajetória artística que venho traçando. Um momento de maturidade artística, pois estava consciente de sua totalidade. Não existiam funções como ator, diretor, dramaturgo. Éramos eu e minha sonhada amizade com Mário de Andrade, separada por setenta anos. O grande intelectual da Lopes Chaves nunca deixou uma carta sem resposta. Então, eu quis escrever a minha para ele e escrevi Manuela, que nasceu de um projeto contemplado pela lei de fomento, em 2014, na qual a companhia se dividiria em núcleos de investigação a partir do tema Os bons exemplos concretos. Logo avisei que o meu seria o núcleo Lopes Chaves e convidei o ator Rodrigo Mercadante e o bailarino José Romero para participarem da empreitada. Estava completamente tomada pelo poema terminal de Mário, A Meditação sobre o Tietê. Dele nasceu Paulicéia, personagem que faço no espetáculo Armadilhas Brasileiras. Quis conhecer toda a obra do Mário. Que inocência a minha!Precisaria de sete vidas longas para isso! Mas fui me encontrando com ele e quando li sua correspondência com Drummond e Manuel Bandeira, tive a dimensão de quem era aquele brasileiro. Manuela estava lá, era sua máquina de escrever, batizada assim em homenagem ao amigo Manuel Bandeira. Ele sempre falava dela como uma mulher paciente e companheira dos seus pensamentos. Então, me veio a ideia! E se a máquina contasse a história? Seria um ponto de vista feminino da narrativa, Mário não precisaria estar em cena, mas estaria. Decidi que o espetáculo se chamaria Manuela e que o texto teria que ser elaborado a partir do amor que eu estava sentindo pela obra de Mário. Foi meu primeiro texto teatral e uma experiência talvez mais realizadora do que estar em cena.

Pavis afirma que, “o monólogo é um discurso que a personagem faz a si mesma”, marcado pela “ausência de intercambio verbal”. O espetáculo Manuela se apropria dessa estética teatral, desafiando seu trabalho como atriz. Como foi a experiência de atuar sem ter outro ator em cena?

Eu precisava falar urgentemente sobre o que havia descoberto. Achava que toda gente precisava saber do Mário de Andrade para além de Macunaíma. Eu precisava parar olhar nos olhos das pessoas e dizer: você pode até achar que o Mário foi um escritor difícil, mas não! Aproxime-se dele e verá que não! Citando Drumonnd, em “Mário de Andrade desce aos infernos: …“ mais perto e uma lâmpada! Mais perto e quadros, quadros!Portinari aqui esteve deixou suas garras, aqui Cezanne, Picasso, os cantadores, a gente de pé no chão, a voz que vem do nordeste, os fetiches, as religiões, os bichos, aqui tudo se acumulou, essa é a Lopes Chaves 546, outrora 108”. E foi o que fiz, falei dele para as pessoas, através de Manuela.O teatro narrativo possibilita a experiência de cumplicidade direta com o público. E dentro dela o ator pode ser um que se torna muitos. Através da narrativa da Manuela, personagens se materializam e ela passa a ser o próprio Mário ou Macunaíma e depois voltar a ser a máquina que conta, o narrador/personagem. São essas camadas que detonam o jogo teatral direto com o espectador, diferente do jogo entre atores.

DaTchau – Rumo à Estação Grande Avenida, com texto e direção de Pedro Pires, seu atual trabalho, retrata muito de nossas históricas mazelas sociais. Acredita no teatro como ferramenta de conscientização social?

Sim, a arte manifesta-se num contexto histórico/social e, portanto, cultural. Ela precisa dos elementos da realidade para sua elaboração e vitalidade. É um propósito expresso, uma elaboração de significados e percepções. Não é um instrumento de ditar verdades, mas de mostrar a importância de pensar o mundo e de se manifestar diante dele.

Além de atriz, você é também diretora. Vale a pena mudar de lado?

Acho que esses dois lados são siameses. Manuela é o resultado mais concreto dessa minha constatação. Esse trânsito é vital para mim, um alimenta o outro e, às vezes, um apazigua o outro. Atualmente, a dramaturgia também ganhou enorme propósito na minha trajetória artística.

Que desafios são mais presentes para que grupos como a Cia do Feijão possam sobreviver num momento em que as frias e injustas leis de mercado uma vez mais tomam fôlego, como há tempos não víamos?

É de arrepiar! Um desmonte na cultura que acerta em cheio os coletivos artísticos. Muitos grupos entregaram suas sedes, locais onde aconteciam espetáculos, cursos de formação, ciclos de palestras e debates. A arte não pertence ao artista, ela vem do atrito com a sociedade e promover esse encontro é responsabilidade dos governos. O cidadão tem que querer e exigir os bens culturais e o artista é responsável por elaborar a arte que o cidadão tem direito. O desafio está diante da insistência e resistência das políticas públicas destinadas à área da cultura.O artista vai sobreviver, difícil será manter vivo os coletivos e seus espaços. É fundamental que eles existam, pois acredito que virão da arte as primeiras reflexões sobre esses nossos tempos sombrios.

Sobre os entrevistadores: Angelo Mendes Corrêa é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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