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“Quem tramou Roger Rabbit?” – o filme que uniu Disney e Warner fez 30 anos

Um filme misto de animação e live actionque envelhece, mas não perde o vigor. Traições, conspirações, assassinatos e desenhos animados, tudo junto. “Quem tramou Roger Rabbit?” (Who Framed Roger Rabbit) fez a proeza de unir a era de ouro da animação ao cinema noir.

Fruto de uma longa gestação, de um orçamento exacerbado, do carisma do produtor Steven Spielberg e do esmero do realizador Robert Zemeckis e do animador Richard Williams, esta mistura de animação e live actioncontinua impressionante e vigorosa, chegando aos 30 anos da sua estreia com o mesmo vigor da época do seu lançamento. Ainda mais tendo em conta que a interacção entre desenhos e o mundo real foi feita de forma quase artesanal, numa época onde o chroma keyera uma novidade e os efeitos em computação gráfica ainda davam os primeiros passos. Ainda hoje é o mais perfeito exemplo de fusão entre desenho animado e imagem real, um filme incontornável, repleto de humor tresloucado e irresistível, que acabou por dar o pontapé de saída para a idade de ouro da animação que vivemos actualmente.

Além do seu fantástico acervo visual, a longevidade de “Quem tramou Roger Rabbit?” também se deve ao seu rico argumento. Apesar de ter sido considerado “filme para a família”, o esmerado texto de Jeffrey Price e Peter S. Seaman (baseado em “Who Censored Roger Rabbit?”, de Gary K. Wolf), foi inteiramente concebido a pensar no público adulto. No fundo, conseguiu-se dois tipos de filme: um visto com o olhar da infância, cheio de piadas físicas e de personagens queridas e outro visto com maturidade, com alguns detalhes sórdidos que mostram a complexidade da narrativa e a sua qualidade enquanto comédia noir.

Quando “Quem Tramou Roger Rabbit?” chegou aos cinemas a 21 de Junho de 1988, a situação era bem diferente: Hollywood produzia apenas uma longa-metragem de animação de dois em dois anos e ainda assim a expectativa em relação à mesma era relativamente baixa uma vez que todos pareciam estar convencidos de que os desenhos animados eram algo exclusivo das crianças e, por isso, era raro ver um adolescente ou adulto ir sozinho ao cinema por causa de um filme de animação. Mas com “Quem Tramou Roger Rabbit?” isso mudou e o filme tornou-se o percursor não só do renascimento criativo da Disney como, principalmente, da prosperidade de toda a indústria de animação, considerada algo moribunda nas décadas anteriores. Actualmente, vive um período de explosão criativa e produtiva como nunca antes se imaginara. Ora, “Quem Tramou Roger Rabbit?” veio desmistificar a ideia de que o cinema animado era apenas para crianças e acabou por provar que um filme com animação poderia ser um verdadeiro “blockbuster” nos finais do século XX, tal como “Branca de Neve e os Sete Anões” o fora em 1937, quando se tornou o maior êxito da história do cinema até àquela data.

Os estúdios Disney, nos anos 80, ainda foram tentando provar que se mantinham no activo, com filmes como “Papuça e Dentuça” ou “Taran e o Caldeirão Mágico”, mas a sua produção era uma réstia do que fora no passado e vivia, sobretudo, das glórias dos seus clássicos, que os repunha nas salas de sete em sete anos. Steven Spielberg, que sempre fora apaixonado pela animação, apostou na mesma em 1986 e produziu “Fievel – Um Conto Americano”, que acabou por ser o 16º filme mais visto nos EUA naquele ano, coisa que há muito não se via.

Mas a revolução a todos os níveis deu-se mesmo com “Quem Tramou Roger Rabbit?”, que Spielberg co-produziu com a Disney e se tornou, de rompante, o filme mais visto do ano em todo o mundo em 1988. E não só: facturou uma verdadeira fortuna em todo o globo e foi nomeado para seis Óscares, tendo ganho três em competição e mais um honorário.

Começou por ser uma aposta muito arriscada: um filme de orçamento muito elevado, que cruzava desenho animado e imagem real a uma escala nunca vista. Porém, o resultado foi uma verdadeira vitória, que tanto veio recuperar a qualidade estética dos melhores filmes da Disney, como o humor característico dos cartoons da Warner Bros. “Quem Tramou Roger Rabbit?” era uma homenagem ao passado da animação que, contudo, acabou por abrir portas para o seu futuro.

Roger Rabbit e a voluptuosa Jessica Rabbit eram personagens de animação novas, em constante interacção com o protagonista Bob Hoskins a fazer do detective pouco sóbrio Eddie Valiant, e em seu redor iam surgindo a maioria das figuras dos desenhos animados da época, da Disney à Warner, da MGM a Walter Lantz, num cruzamento até então considerado impossível e que só o prestígio de Spielberg tornou válido.

Os efeitos do sucesso do filme nos anos seguintes fizeram-se logo sentir. A Disney teve um renascimento criativo com “A Pequena Sereia”, “A Bela e o Monstro” (que se tornou no primeiro filme de animação nomeado a Óscar de Melhor Filme e foi mais um passo para a legitimação do desenho animado entre os adultos), “Aladdin” e “O Rei Leão”, com estes dois últimos a serem os maiores sucessos do ano em todo mundo nos respetivos anos em que estrearam. Outros estúdios proliferaram e também lançaram grandes sucessos de animação. No campo televisivo, a animação também conquistou novos públicos e com maior abrangência de idades, graças ao sucesso de “Os Simpsons”, estreado em 1989, e a produção de animação para todos os públicos e em todos os géneros e plataformas não tem parado de crescer em todo o mundo. Toda uma explosão criativa que vem lembrar a qualidade do grande filme que lhe antecedeu e que ainda hoje é uma das maiores homenagens aos desenhos animados que o cinema produziu.

Para celebrar (e entender) a importância de “Quem tramou Roger Rabbit?”, fiquem com algumas curiosidades:

– Spielberg foi fundamental na hora de convencer a Warner Bros. a libertar as suas criações para a Disney. Além dos US$ 5 mil pagos por cada personagem, o filme precisava atender algumas exigências, como dar o mesmo tempo em cena para personagens icónicas da Warner e da Disney. É por isso que o Bugs Bunny e Duffy Duck dividem o ecrã com o Mickey Mouse e o Donald Duck, garantindo que estas personagens tivessem o mesmo número de frames.

– Muitas das personagens usados no filme não tinham sido criadas até 1947, ano em que o filme é situado. As personagens da Disney que aparecem são: Mickey (1928), Minnie (1928), Pluto (1930), Pato Donald (1934), Pateta (1932), Bafo de Onça (1925), Horácio (1929), Clarabela (1929), Merry Dwarfs (1929), Huguinho, Zezinho e Luisinho (1937), Clara (1934), as flores e árvores de Flores e Árvores (1932), Lobo Mau e os Três Porquinhos (1933), Peter Porco de A Galinha Esperta (1934), Toby Tortoise, Max Hare e as coelhinhas de A Tartaruga e a Lebre (1935), os órfãos de Em Benefício dos Órfãos (1934), Capuchinho Vermelho de O Super Lobo Mau (1934), Jenny Wren de A Flecha do Amor (1935), Elefante Elmer (1936), Branca de Neve, os sete anões e a bruxa de Branca de Neve e os Sete Anões (1937), Wynken, Blynken & Nod (1938), Ferdinando, o Touro (1938), Pinóquio e o Grilo Falante de Pinóquio (1940), as vassouras, os cupidos, o bebé pégaso, a avestruz e a hipopótamo de Fantasia (1940), Sir Giles e o Dragão Relutante (1941), Dumbo, a Sra. Jumbo, Casey Jr. e os corvos de Dumbo (1941), Bambi (1942), Chicken Little (1943), Zé Carioca (1942), o pelicano de The Pelican and the Snipe (1944), Pedro de Música, Maestro! (1946), Br’er Bear, as marmotas e o bebê de piche de Canção do Sul (1946), a arpa cantante de Como é Bom de Divertir (1947), os animais de Johnny Semente-de-Maçã (1948), a ovelha Danny de Tão Perto do Coração, Sr. Toad e seu cavalo Cyril de Dois Sujeitos Fabulosos (1949), Sininho de Peter Pan (1953), Maléfica de A Bela Adormecida (1959) e os pinguins de Mary Poppins (1964).

As personagens da Warner que fazem aparições no filme são: Bugs Bunny ou Pernalonga (1940), Daffy Duck (1937), Porky Pig (1935), Piu-piu (1942), Silvester (1945), Yosemite Sam (1945), Foghorn Leghorn (1946), Marvin, o Marciano (1948), Bip Bip (1949), Coiote (1949), o buldogue Marc Antony (1952), Sam Sheepdog (1953) e Speedy González (1955). Da Paramount aparecem Koko, o palhaço (1919) e Betty Boop (1930). Walter Lantz emprestou Pica-Pau (1940) e a MGM cedeu Droopy (1943).

– Durante as filmagens, um dos maiores desafios foi a interacção dos personagens animados com os objetos e atores reais. O efeito final foi resultado de duas técnicas: alguns objectos, como o charuto do bebé Herman e os pratos que Roger quebra na própria cabeça, eram movimentados no set por meio de máquinas de movimento presas a um operador. Na pós-produção, o personagem era simplesmente desenhado sobre a máquina. A cena do clube Ink & Paint seguia na mesma linha, os copos movimentados pelo bartender polvo são controlados como marionetas e as bandejas dos pinguins garçons eram coladas em bastões. Tanto os bastões como os fios foram removidos e os desenhos foram adicionados. Já na sequência que se passa em Toontown, o chroma key foi a técnica escolhida, com Bob Hoskins a interagir com o mundo que seria criado na pós-produção.

– A pós-produção levou 14 meses para ser concluída. Com 326 animadores contratados e 82.080 frames de animação desenhados, o filme tinha uma das maiores sequências de créditos da década de 80.

– Jessica Rabbit reúne quatro femme fatales. O escritor Gary K. Wolf baseou Jessica em Red, criada por Tex Avery, já o animador Richard Williams procurou inspiração em Rita Hayworth e Veronika Lake. Por sugestão do diretor Robert Zemeckis, Lauren Bacall também serviu de inspiração para o visual da personagem.

– Com o lançamento do filme em DVD, duas sequências do filme tornaram-se controversas, graças a possibilidade de visualização do filme frame a frame. A primeira mostraria a breve nudez de Jessica Rabbit (na cena do acidente com o Benny, o táxi) e a segunda envolveria o bebé Herman e seu olhar lascivo quando ele esbarra na saia de uma mulher no set de filmagem.

– Sete anos se passaram até que “Quem tramou Roger Rabbit?” saísse do papel. O mesmo processo lento acompanhou a sequência, planeada desde o sucesso do original nas bilheterias. Depois de muitas versões de scripts e testes de efeitos especiais rejeitados, a última notícia sobre o filme é de 2012 e com a morte de Hoskins o projeto parece ter sido deixado de lado. Contudo, se depender da persistência de Zemeckis, a continuação tem hipóteses de sair do papel.

E assim termino esta minha homenagem a “Quem Tramou Roger Rabbit?” onde, há 30 anos, um coelho trapalhão veio revolucionar o cinema…

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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