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“O deslumbre de Cecilia Fluss” de João Tordo

Ficha técnica

Título – O deslumbre de Cecilia Fluss

Autor – João Tordo

Editora – Companhia das Letras

Páginas – 336

Opinião

Tenho sete livros de João Tordo nas estantes. O deslumbre de Cecilia Fluss foi o último que li. Com ele encerrei a trilogia à qual pertencem O luto de Elias Gro eO paraíso segundo Lars D. Desses sete que tenho e que já li, continuo a preferir de longe A biografia involuntária dos amantes, embora também recomende Três vidas (o primeiro que li do autor e com o qual ele ganhou o Prémio José Saramago) e O luto de Elias Gro. Aos restantes não pretendo voltar, porque não me satisfizeram e não me preencheram como desejava que me preenchessem.

Após a pequena desilusão que foi a leitura de O paraíso segundo Lars D., compreendem que estivesse algo receosa ao tirar da estante o seu sucessor e aquele que fecharia a trilogia. Tinha plena consciência de que iria mergulhar numa narrativa desoladora, triste, deprimente, com personagens desamparadas, desgarradas, carentes e talvez incompreendidas pelos outros e por si mesmas. Tinha igualmente plena consciência de que a escrita do autor não me defraudaria, porque João Tordo escreve maravilhosamente bem, oferece-nos inúmeras passagens que apetece sublinhar, destacar e assinalar, provas mais do que evidentes de que a sua escrita está cada vez melhor, refinada e madura. Contudo, o receio e a desconfiança não me largavam e senti que havia razões para a sua existência à medida que penetrava na narrativa e bufava de algum descontentamento e frustração perante páginas e páginas centradas em Matias, um adolescente obcecado pelos prazeres carnais que vai descobrindo em sessões diárias de masturbação e pelos ensinamentos budistas, aos quais tem acesso através do seu professor de História.

Tenho que admitir que nunca “engracei” com a filosofia nem com religião disfarçada de filosofia. Se tropeço em passagens, em textos ou em obras onde abundem referências filosóficas, religiosas ou dos chamados ensinamentos de vida começo logo a revirar os olhos, a bufar e não perco muito tempo em partir para outra leitura. No caso de O deslumbre de Cecilia Fluss, obriguei-me a fazer um esforço, a controlar a ânsia de passar páginas e de contar as que faltavam para terminar a primeira parte da narrativa e iniciar a segunda que esperava e pedia que fosse diferente. E o esforço resultou, pois as partes dois e três são incrivelmente melhores e elevaram para fasquias bem mais apetitosas uma leitura que me estava a deixar ainda mais deprimida que as personagens que a habitam.

Matias Fluss vive com a mãe e a irmã mais velha, Cecilia Fluss. É sobrinho de Elias (o mesmo do livro que inicia a trilogia) e toda a sua família é estranha. Ele é introvertido e obcecado por coisas tão díspares como o sexo e a religião budista, a mãe é uma mulher que, estando presente em casa, parece estar ausente, pouco ou nada diz ou faz e comporta-se de forma displicente face às escapadelas frequentes da filha e aos seus hábitos pouco saudáveis. Cecilia raramente põe os pés na escola, bebe, fuma e passa horas e horas fora de casa com um suposto namorado mais velho do que ela. Por sua vez, Elias vive no meio do bosque, numa cabana decrépita e na companhia de dois cães, com os nomes curiosíssimos de “Vivo” e “Morto” e é o único da família a quem está diagnosticada demência. Tudo isto vamos sabendo na parte que arranca a obra, narrada pelo próprio Matias e que se intercala com passagens menos assíduas da sua vida enquanto adulto.

Nas partes que se lhe seguem a narrativa salta para o presente e é aí que vamos começar a ter respostas, os fios soltos ao longo desta obra e da trilogia começam a juntar-se e a teia compõe-se nas páginas finais, onde tomamos conhecimento do que, por exemplo, aconteceu a Cecilia, o que motivou o seu deslumbre e por que razão Elias Gro, na obra homónima, se mudou para uma ilha e o que esteve por detrás do seu luto. O círculo fecha-se e a leitura encerra, pelo menos para mim, com mais claridade e menos “treta” religiosa (perdoem-me quem for admirador ou professo do Budismo) que apenas emperrou um texto que, na minha opinião (e reitero – na minha opinião), se tornaria menos enfadonho se fosse apenas composto pelas partes dois e três.

Talvez esteja a transmitir, com aquilo que escrevi até aqui, uma ideia algo exagerada (vejam lá como fico quando tenho que “lidar” com assuntos filosóficos ou religiosos que nada trazem para a minha vida…). A obra tem passagens lindíssimas, as referidas partes dois e três são muito boas, adorei a versão adulta, solitário, meditabunda e deprimida do Matias, senti-me muito pertinho dele e nada espantada ou defraudada com as suas escolhas. Adorei a personagem feminina que protagoniza a parte três e adorei regressar ao ponto de partida, ao início da trilogia. Foram essas 130, 135 páginas que redimiram a leitura, pois, apesar de constituírem menos de metade do livro, chegam, são suficientes para sentir-me bem e realizada no final de uma trilogia que abre com um livro muito bom, que segue com outro mediano e que fecha com outro ligeiramente melhor do que o seu antecessor.

Neste momento, falta-me apenas um livro de João Tordo na estante – Ensina-me a voar sobre os telhados. Não estava com muita vontade de o comprar nos próximos tempos, mas, após ter visto um vídeo da Dora no booktube, já mudei de opinião e quero-o. Muito.

NOTA – 08/10

Sinopse

No final desta «trilogia dos lugares sem nome», iniciada com O luto de Elias Gro, João Tordo explora, através de personagens únicas e universais, numa geografia singular, os temas da memória e do afecto, do amor e da desolação, da vida terrena e espiritual, procurando aquilo que com mais força nos liga aos outros e a nós próprios.

in O sabor dos meus livros

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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