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A Némesis

“Tive numa carreira anterior um posto diplomático onde ajudei a derrubar a União Soviética. Portanto, talvez haja outra união que precisa de ser subjugada.”

Foi desta forma que Theodore Malloch descreveu as funções que irá em breve assumir junto da UE, na qualidade de embaixador dos EUA. Isto não é de modo algum um lapsos linguae, mas sim mais um sintoma de uma vontade aberta por parte dos EUA em desmantelar a UE. O apoio manifestado pelo governo americano a políticos euro-fóbicos ou a anunciada chegada à Europa do BreitbartNews (um sítio electrónico de propaganda de extrema direita cujo director integra o novo governo dos EUA) são outras peças do mesmo puzzle.

Independentemente da credibilidade que se possa dar a personagens como Theodore Malloch, é importante compreender a origem desta ameaça à União Europeia.

Na política, a ameaça de um arqui-rival é um instrumento muito útil de união e mobilização. Os EUA devem a sua existência à percepção de uma ameaça comum a diferentes e dispersas colónias do século XVIII: um poder imperialista implacável. Foi a luta contra este inimigo comum que originou um edifício político de alcance social e geográfico sem precedentes.

Depois de décadas conturbadas no século XIX, os EUA re-descobriram no século XX o poder federativo de um arqui-rival. Com sistemas político e económico marcadamente diferentes, a USSR preencheu esse papel na perfeição durante o meio século que sucedeu a Segunda Guerra Mundial. Mas no virar de século XXI pouco vestígios restavam já do Comunismo Soviético.

Um vazio ideológico abriu-se que era necessário preencher. Entre o tratado de Maastricht (1993) e o tratado de Lisboa (2007) a UE tornou-se numa das maiores construcções políticas da História, acabando por tomar o papel desse grande rival federativo e mobilizador. Lentamente, sucessivos opinadores americanos foram encontrando nos valores europeus resquícios do seu antigo arqui-inimigo comunista.

Instituições como o sistema nacional de saúde, a escola pública, o sistema nacional de pensões, o subsídio de desemprego, a Flexi-segurança,  o direito laboral, os 25 dias de férias anuais (nos EUA são só 10), o rendimento mínimo garantido e todos os outros mecanismos que formam o Estado Social europeu são hoje equiparados por ideólogos americanos ao sistema de economia planificada da antiga URSS.

O controlo que os democratas-cristãos detêm há mais de vinte anos sobre os destinos da Europa e a recente hecatombe dos partidos sociais-democratas europeus pouco interessam aos americanos. É a própria matriz social europeia, baseada nos princípios da solidariedade, igualdade e fraternidade, a ser percebida como ameaça por modernos formadores de opinião americanos.

Até aqui valores comuns como a Democracia, a liberdade de expressão ou o liberalismo económico impuseram-se a estas diferenças de filosofia social; mas hoje deixou de ser assim. Para uma grande parte dos americanos a União Europeia é um bastião do Socialismo que é necessário derrotar.

A quebra das negociações em torno do acordo de comércio livre  entre a UE e os EUA não é alheia a este desenvolvimento. Para lá da destruição do estado social e da erosão da carta dos direitos fundamentais, esta ofensiva contra a UE tem também objectivos puramente comerciais. Uma Europa fraca e fragmentada não será permeável apenas à ideologia americana, sê-lo-á também às suas corporações.

Na ânsia por encontrar mercados alternativos que colmatem o vazio da sua extracção da EU, o Reino Unido procura agora um acordo bilateral de comércio livre com os EUA. Do outro lado do Atlântico chegam pré-condições que ilustram bem estes objectivos comerciais, como é por exemplo o requisito de o Reino Unido privatizar o seu sistema nacional de saúde.

Serão estes desenvolvimentos preocupantes? Sim, se falharmos em identificar aqueles que não são mais que fantoches desta ofensiva contra os nossos direitos, os nossos princípios e o nosso bem-estar social.

Adiar mais o processo de integração europeia deixará brevemente de ser opção. Não porque a EU seja uma construcção perfeita, mas porque, apesar de todos os defeitos e deficiências, permanece a principal fortificação em torno do nosso modo de vida.

E no fim de contas, tal como os EUA baseam a sua coesão num arqui-rival, encontrar a Nemésis da UE pode bem vir a ser o impulso que falta para levar a bom porto a construção europeia.

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